Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

As caras da coluna social

Não sei se em todos os países é assim, mas há nos jornais do Brasil uma coluna que é a própria cara da sociedade, invertida. Louras bem vestidas, sorridentes, bonitas por escolhidos ângulos fotográficos, dir-se-ia que são caras e personagens que vêm de outro país, mui distante. De um país que não há em qualquer lugar do mundo, na verdade. Pois em que lugar do mundo haveria sempre pessoas vestidas para o casamento, no momento do ‘sim’ alheias à gravidade fatal do passo, em que país há tantos mestiços arrependidos com os cabelos amarelíssimos, em que nação há tantos brancos bronzeados pelos trópicos, em que ficção de room de aeroporto, enfim, há tantos dentes na cara, ainda que sob constrangimento, porque vêm de casais há décadas em pose para a foto? Somente mesmo nesses territórios onde a gente elegante se encontra, mais conhecidos como colunas sociais.


O interessante é que neste caso também o vulgar ganha o seu estatuto de universalidade. As caras que vemos no Recife, em Botucatu, no Rio de Janeiro, em São Paulo, também poderiam ser vistas em Londres, Madri, Paris e Tegucigalpa. Elas, essas caras, fazem parte de um gênero tão universal quanto a decoração de qualquer shopping center da Terra. São caras de bonecas Barbie traduzidas aqui e ali em olhos mais ou menos oblíquos, são peles de plástico matizadas conforme o vento e a geografia.


Em nome do respeito caridoso, de um humanismo que cede lugar ao humanitário, deveríamos dizer que são caras de gente em situações e poses artificiais, ou para abusar de superlativo que nas colunas sociais é uma língua, são caras elegantérrimas e artificialíssimas, tão universais quanto uma Barbie num comercial de Coca-Cola.


Charme e feminilidade


Tenho os olhos voltados para as colunas sociais do Recife. Mas saibam que no tapete mágico da web, voei por várias colunas do Brasil. E aqui o coração pressentiu menos que a vista presente. Que estranha unidade nacional. Vejo caras todas sorridentes de um extremo a outro do vasto território brasileiro. Há, reconheçamos, alguns insinuações de resistência. Na coluna de Simone Lima, na Folha de Pernambuco (14/10/05), o bravo desembargador, presidente de um Tribunal, acha pouco respeitosa uma foto em que mostre os restaurados dentes. E por isto anuncia-se como uma Gioconda ao lado de um bolo de aniversário. Mais que original, originalíssimo.


Outra, com menos poder, mas filha de quem o tem, distribui simpatia e ‘alto astral’ na coluna de João Alberto, do Diário de Pernambuco (10/10/05). Nesse mesmo dia e coluna, um casal sempre apaixonado. Apaixonadérrimos, para melhor sorriso dos amantes, de ambos. Noutra, no João Alberto de 19/10/05, um deputado federal é só relax, e a esposa, que não aparece na CPI em Brasília, aproveita esse minuto de glória para dizer ‘eu também sou feliz’, de oeste a leste, de norte a sul da face, com todas as maxilas.


Noutro canto da coluna, as elegantes sozinhas (enquanto o marido não vem?), têm legenda de ‘ Charme’ e ‘mulheres sempre elegantes’ e sorrisos, pois, quem sabe, talvez estejam mui felizes sem companhias masculinas.


E o domingo, que sempre é dia de gente bonita, com jovens de cabelíssimos longuérrimos, a exibir a despreocupação com esse mundo distante, de guerras, de conflitos, com a exceção, é claro, de achar a sorrir o melhor sorriso para este domingo. E alas de frente de senhoras, com a nova praga do blazer preto, e colares e gargantilhas, e aquele cair de lado da cabeça, que é uma graça de charme e de uma feminilidade quentérrima. Para que museu de cera posa toda essa gente?


O mundo e seu espelho


Já mencionamos os superlativos, que se usam como pastilhas de menta nessas colunas sobre gente famosa, e bonita, com a devida danação da ética e da estética. Os colunistas não sabem nem precisam saber o que é isto. E aqui até parece que foram varridas a dialética e a contradição. Há uma coerência absoluta, sem fissuras, diríamos, no universo dessa gente very importantérrima y più bella, com a devida vênia por semelhante construção. Mas queríamos dizer, há uma harmonia só encontrável nos céus entre esse mundo VIP, o nível intelectual dos colunistas e a linguagem de suas colunas. Está aí um triângulo amoroso perfeito. Eqüilátero regularíssimo. Ou regularréssimo.


Alguns excertos, para que não digam que exageramos:




‘Com cerimonial impecável, a festa reuniu muita gente conhecida da cidade. A beleza da casa de recepções foi realçada por decoração de N., com flores vermelhas e muitas raízes de inhame…. O jantar com menu escolhido incluía empratado [sic] de perdiz com chutney de maçã e shitake’. (João Alberto, Diário de Pernambuco, 10/10/05)


Nós, da periferia, mal podemos dormir com o sonho impossível de tão raros sabores. Mal acordados, recebemos o estímulo de outro colunista, Orismar Rodrigues, do Jornal do Commercio (15/10/05):




‘A. celebrou a vida [deseja-nos dizer que A. ofereceu uma festa de aniversário] sábado, comemorando o seu niver. A festa teve dois rounds [rounds!]. À tarde, o mulherio pôde falar o que quisesse entre elas com o aval da aniversariante, que recebeu num elegante conjunto de calça comprida azul com uma longa bata bege. À noite, os marmanjos juntaram-se às suas mulheres para um uisquinho e um delicioso menu. C. lançou, na ocasião, os docinhos coração aveludado. Tudo de bom. Perfeccionista como ela só, A. mandou confeccionar os porta-guardanapos ostentando mini-orquídeas naturais. M. assinou o bolo de frutas sextavado em forma de caixa de chocolate, nos tons lilás, rosa e verde…’.


Essas descrições, de grande utilidade para o ego do niveriante, não recuam diante da extravagância, do rico e imaginoso mundo do VIP até o colunista, atônito com os bolos sextavados, com as raízes de inhame, shitakes, doces em coração de veludo e porta-guardanapos que se transformam em orquídeas. Se alguém, na vizinhança da nossa periferia, imagina uma burguesia sem educação, ora sem educação, se alguém imagina uma burguesia sem a mais elementar riqueza de espírito, que se deixa retratar por um servidor doméstico à sua altura, então esse alguém é um sujeito razoável, ainda que não receba jamais um convite para tão fino Olimpo.


Sorri, periferia


Há, por certo, os mais cultos. Ninguém diria que os colunistas dos grandes jornais das metrópoles se nivelem a semelhante rastaqüerismo. É claro que eles não dizem, como alguns colunistas do grande interior que é o Brasil, que os noivos ‘convolaram núpcias’. Ou iniciem frases com a flor digna de um florilégio, ‘a chegada da primavera nos trouxe aos pés anjos e querubins’. Mas são capazes, os dos grandes jornais, de flores e jóias em outra direção e brilho. Como Hildegard Angel, do Jornal do Brasil (15/10/05):




‘A noiva estava um acontecimento: o véu em formato de leque com renda Chantilly foi confeccionado em Paris, quem pode, pode. Seguindo a tradição da família, a noiva usou como grinalda uma pulseira que pertenceu à trisavó Ela chegou princesa, numa Rolls Royce prata usada em todos os casamentos da família. A música mecânica na igreja foi um espetáculo à parte. Durante toda a cerimônia, fundo musical: Ave Maria, de Gounod, Rêve d´Amour e Salut d´Amour. À saída, o tema Alegria, da Nona Sinfonia de Beethoven, e depois a Ave Maria interpretada pelo chansonnier Charles Aznavour. O noivo fez discurso emocionante no salão de cima da casa de festas, onde houve o brinde. Depois, ajoelhou-se aos pés da noiva, fazendo juras de amor eterno. Teve gente que chorou nessa hora. A festa no salão de baixo foi super animada com aquele time raro de jovens bem-nascidos, bem vestidos, bem educados’.


Vê-se, claro, que nos grandes centros a grossura, a falta de educação e o ridículo apenas aumentam de renda. Se no Recife a noiva não vem para a cerimônia vestida em ‘uma’ Rolls-Royce, pelo menos evitam-se as declarações de amor eterno que comovem e sujam de lágrimas a pancake dos convidados. E que mistura indigesta, música mecânica a misturar Ave Maria e a Nona Sinfonia de Beethoven! Não se repetem aqui o bolo sextavado e as raízes de inhame do Recife? E o que dizer da cultura, do legítimo francês, que confunde cantor com cancioneiro em chansonnier?


A periferia delira, vai à superior condescendência, porque chama cantor de cantor e jamais de chansonnier. Enquanto os burgueses choram com a farsa das declarações no altar, a periferia sorri. Sorri, periferia. Pode cantar e gritar com Jorge Ben Jor: ‘Eu vou chamar o síndico. Tim Maia! Surfista de trem, surfista de trem….’.