Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

As crianças do Brasil

Tão importante quanto a cobertura jornalística do assassinato da menina Isabella Nardoni são as matérias jornalísticas sobre a situação da criança no Brasil. É um cenário tão ou mais revoltante do que o crime em si. Porque se abre a cortina da morte anunciada durante o ano de milhares de crianças brasileiras vítimas da mesma violência e que poderiam ser evitadas. Duas dessas matérias foram publicadas pelo jornal O Estado de S.Paulo.

Na primeira (21/4, pág. C5), uma entrevista do jornalista Sérgio Duran com o especialista em medicina legal Wilmes Roberto Teixeira. O criador do conceito Sibe – Síndrome do Bebê Espancado – descortina as diversas formas de violência praticadas por maus pais e mães contra uma estimativa de 400 mil a meio milhão de crianças, por ano, no Brasil. Quarenta mil dessas crianças ficam em estado grave e 4 mil morrem.

Surpreende o fato de que não existem estatísticas no país sobre a morte de crianças vítimas da violência, apenas estimativas. ‘Se fossem bovinos, ovinos ou caprinos, parafraseando o discurso do deputado Alencar Furtado, líder do MDB, que levou à cassação do seu mandato parlamentar em 30 de junho de 1977, o Ministério da Agricultura já teria decretado estado de calamidade pública e o governo federal passaria a assistir a esses animais. Mas são apenas crianças. Crianças pobres de nosso pobre Brasil!’

Vigilância Sanitária

De lá pra cá, os direitos das crianças e adolescentes passaram a figurar em capítulo específico da Constituição de 1988. A partir daí se editou o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente e criaram-se centenas, senão milhares, de Conselhos Tutelares país afora, com conselheiros preparados e remunerados para a missão de proteger as crianças e adolescentes junto a Delegacias de Polícia e Varas da Justiça especializadas. Entretanto, as crianças continuam a morrer vítimas da violência sem sequer existirem estatísticas… apenas estimativas!

A segunda matéria jornalística é publicada no mesmo dia pelo Estadão (pág. A18) sobre ‘Vida & Saúde’, dando conta que ‘ferro em farinha surte pouco efeito’, pelo que se constata que 50% das crianças de até 5 anos e 30% das grávidas no país sofrem de anemia. ‘Segundo a Organização Mundial da Saúde’, informa a reportagem do jornalista Fabiano Leite, ‘taxas acima de 5% são motivo de preocupação. A fortificação de farinhas é parte de uma série de ações com o objetivo de reduzir esses índices. Os fabricantes foram obrigados a adicionar 4,2 miligramas de ferro e 150 microgramas de ácido fólico (vitamina B9) para cada 100 gramas de farinha.’

E a surpresa fica por conta da informação do Ministério da Saúde, admitindo que falta fiscalização. E daí remete-se mais uma vez à Constituição cidadã de 1988, que criou o Sistema Único de Saúde (SUS), ao qual compete ‘controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde’, o que é feito através da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), ramificada em centenas, senão milhares, de agências estaduais e municipais.

Exercício da cidadania

Vá o infeliz do desempregado, no entanto, tentar ser empreendedor, abrindo um pequeno negócio no seu bairro ou em sua cidade, para cuidar de sua família, notadamente das crianças… Logo vem o fiscal da Vigilância Sanitária colocando uma série de obstáculos para a abertura do seu negócio. Porém, confira se algum fabricante de farinha estabelecido foi visitado por algum fiscal da Vigilância Sanitária…

No triste episódio da menina Isabella, não está em causa apenas a violência que a levou à morte, mas todas as ações de violência que a todo instante se praticam contra as crianças brasileiras por pessoas más, familiares ou não, e que nem chegam a ser números estatísticos, mas simples estimativas por comparação com outros países, no caso, os Estados Unidos, um país desenvolvido.

Aos que se mostram cansados com o noticiário sobre Isabella, pensem apenas um minuto no papel social que a imprensa brasileira desempenha neste e em outros casos que podem ser pedagógicos para aqueles que diante de tamanho horror se revoltam e, deixando de lado a própria cidadania, procuram até fazer justiça com as próprias mãos, mas deixam no dia-a-dia de exercer integralmente a sua cidadania exigindo dos governantes que elegem ou dos agentes e órgãos governamentais responsáveis que olhem mais pelas crianças do Brasil.

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Jornalista, São José dos Campos, SP