Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

As exalações do poder

Algo não cheira bem na política nacional – decerto que generalizações desse tipo são sempre perigosas, tanto quanto as exceções tornarem-se regra. Mas basta uma olhadela nos noticiários (e por que não ao redor?) para perceber atitudes escusas, atos suspeitos, quando não flagrar cenas explícitas estrelando figuras públicas em episódios de (‘suposta’) corrupção, como nas imagens amplamente divulgadas na mídia do esquema de propinas no governo do Distrito Federal.

O que pode parecer uma velha discussão, na verdade revela um modo sistêmico de se fazer política neste vasto país – diga-se política de bastidores, onde, veladamente, se fazem os acertos ou conluios, entre as tênues fronteiras do que é público e privado, sob o escudo da representatividade do poder, seja municipal, distrital, estadual ou federal. E lá se vão os interesses da coletividade por água abaixo.

Poder-se-ia questionar que tipo de democracia pode sobreviver a uma contaminação dessa natureza na gestão pública. E até que ponto o cinismo dos discursos pode dissimular as atitudes de tais políticos.

Ainda no contexto dos discursos, cabe perguntar qual o papel da mídia, da imprensa, para discernir os reais interesses por trás das palavras vazias, das falsas justificativas, uma vez que os meios de comunicação também não escapam à pressão do jogo do poder ou aos próprios interesses.

Um olhar mais crítico

Uma breve leitura histórica de nossos arraigados hábitos nos diz que as relações familiares, de amizade e intimidade, costumam preceder as relações públicas – daí nosso ‘jeitinho’ típico para acomodar interesses contraditórios na vida cotidiana (Dória, Carlos Alberto, ‘O `jeitinho´ destroçado’, publicado em 02/10/2009, revista eletrônica Trópico, http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/3139,1.shl). Entretanto o que poderia servir de ajuste para tais contradições ou desigualdades do sistema parece virar o ‘mau jeitinho’ (ou o ‘jeitinho do jeitinho’), no desvirtuamento de uma possível qualidade frente aos desafios sociais para tornar-se um instrumento político nas mãos de mandatários pouco escrupulosos, na forma de favorecimentos e locupletação.

Afinal, o ‘jeitinho’ não deveria significar, por exemplo, a manipulação de licitações públicas ou mesmo a sua dispensa no dia-a-dia nas prefeituras e governos estadual e federal. Tampouco permear a promiscuidade das relações através de barganhas partidárias ou apoio político de grandes empresas e empreiteiras para a subsequente farra de propinas e mensalinhos.

Não é preciso ir muito mais além – a riqueza de uns poucos se faz sempre às custas de muitos; de um ou outro modo, acabamos todos pagando por tantos desmandos e ganância. O preço é o esgarçamento ético do tecido social, na falta de serviços públicos de qualidade, de saúde, educação, lazer etc. Bastariam, por exemplo, mecanismos um pouco mais rígidos de controle e análise dos bens declarados (ou não) de nossos (ilustríssimos) homens públicos.

Cabe a cada cidadão estar um pouco mais atento – aos meios de comunicação caberia um olhar mais crítico, a fim de fornecer mais subsídios e informações à sociedade sem o risco de deixar-se inebriar (e/ou contaminar) pelas exalações que emanam do poder, sejam elas de pizza, panetone ou coisa pior.

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Funcionário público municipal, Jaú, SP