Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Bem-vindo à televisão secreta

No dia 2 de dezembro, você está convidado para uma festa exclusivíssima. A comida será ótima, a bebida maravilhosa, a música sublime. O ambiente será o mais moderno e luxuoso, um espanto da alta tecnologia. Mas há um detalhe que talvez faça murchar o suflê: não haverá nenhum convidado na festa, apenas os anfitriões. Os convidados – e você entre eles – vão demorar meses para chegar. E enquanto não chegarem, os anfitriões vão fazer de conta que está tudo bem e vão dançar sozinhos, beber sozinhos, empanturrar-se sozinhos. Não é o máximo da exclusividade?


Bem-vindo à festa da TV Digital. A televisão da qual todo mundo fala e todo mundo lê, mas que raríssimos viram, vêem ou verão tão cedo. A televisão que chega para revolucionar o modo como se assiste TV, mas que vem pelas mãos dos velhos oligarcas de sempre da radiodifusão, de seus valetes no parlamento e no governo, e de seus camaradas da indústria eletrônica – ou seja, dos que não querem revolucionar coisa alguma. Tanto falaram, tanto fizeram, tanto defenderam o seu projeto e combateram os que se opunham a ele, e aí está a sua obra: uma televisão secreta, que será lançada sem que ninguém possa vê-la.


Fantasma da imagem


Previa-se para a noite de 2 de dezembro um imponente show de televisão, realizado em conjunto pelas grandes redes, para apresentar as virtudes da TV Digital e celebrar as grandes mudanças que ela trará ao entretenimento, à informação e à cultura. Desejava-se algo grandioso, que sinalizasse a pujança da televisão aberta brasileira e afirmasse seu poderio, diante das ameaças que enfrenta neste início de século, com o avanço da internet, da IPTV, das mídias portáteis com suporte para imagem.


Mas deu xabu no foguetório pretendido. O que irá ao ar será apenas um vídeo de 5 minutos, provavelmente transmitido em cadeia por todos os canais, anunciando o advento da nova tecnologia televisiva. Vídeo que será visto por 99% dos telespectadores em seus aparelhos analógicos, sem qualquer chance de perceberem as vantagens a digitalização lhes traz.


Não há qualquer decodificador de sinais digitais para aparelhos analógicos – o chamado set top box, ou caixa conversora – à venda nas boas casas do ramo. Nem nas más. O aparelho que permitiria à patuléia captar os sinais digitais em seu televisor trocado na última Copa do Mundo ainda é objeto de uma queda-de-braço entre o governo e a indústria eletrônica. Esta quer lançá-lo com preço superior a 800 reais, aquele insiste que pode fazê-lo a 250 reais. Ela quer redução de impostos, incentivos e beijinhos na orelha para atendê-lo, ele diz que não, nem pensar, é ganância demais.


Enquanto se digladiam, o tempo passa e a tigrada aguarda, arrumando o bom-bril na antena para espantar o fantasma da imagem. Só os ricos estão sossegados, com suas caríssimas telas de plasma ready for HDTV.


Resultado insólito


Os próprios radiodifusores já estão se referindo à TVD como o ‘mico digital’. Sentem-se desconfortáveis em embalar o símio que pariram. E, de fato, não é para menos. A responsabilidade pelo fiasco que se avizinha, e que ficará mais evidente nos próximos dias, é inteiramente deles. Foram ingentes os seus esforços, nos últimos anos, para controlar com mão-de-ferro o processo de implantação da TV Digital, obstruindo todas as divergências e recusando qualquer debate mais aprofundado, para preservar seus interesses de mercado. Construíram o modelo de TVD que queriam, portanto não podem reclamar.


Recordemos que eles lutaram pelo padrão técnico japonês, indiscutivelmente o melhor avaliado nos testes para as condições geográficas do país, mas restrito ao mercado do Japão e, portanto, mais caro que os padrões americano e europeu, muito mais disseminados. Recordemos que essa opção se deu, em larga medida, porque o padrão japonês permite a transmissão simultânea para receptores comuns e para dispositivos portáteis, como o celular, dispensando a intermediação das empresas de telecomunicações – o que significava barrar o seu acesso ao mercado da TV aberta.


Recordemos também que a indústria eletrônica implantada no mercado brasileiro desejava, majoritariamente, o padrão europeu. Recordemos ainda que o governo flertou com a idéia de desenvolver um sistema exclusivamente brasileiro, repetindo o erro da tecnologia de televisão colorida PAL-M, e que imaginou uma parceria com os chineses, antes de render-se aos encantos do eletrosushi.


Recordemos especialmente que esse mesmo governo começou a debater a TV Digital de forma ampla e democrática, constituindo um conselho consultivo com representantes de múltiplos setores sociais, mas depois esvaziou esse processo e entregou-o à radiodifusão e à indústria eletrônica, excluindo a sociedade do Fórum da TV Digital.


Esses fatores, combinados, produzem o insólito resultado: uma tecnologia que chega ao mercado sem disponibilidade de aparelhos para ser consumida. Sem contar o fato de que, das muitas funcionalidades que ela agrega à televisão, terá inicialmente apenas uma, a transmissão em alta definição de imagem e som (imagem duas vezes mais nítida que a atual, som de CD).


Vá ao cinema


Ótimo, dirá você, quero uma TV ‘que seja um cinema’. Mas não lhe explicaram direito que a alta definição só existe para os televisores nascidos digitais, que ela não funciona no seu televisor analógico, mesmo que você compre a caixa conversora de 800 reais – ou mais – que a indústria eletrônica quer lhe impingir. Muito menos lhe disseram que a alta definição só é perceptível, só demonstra sua imensa vantagem, nas telas grandes, superiores a 27 polegadas. Até essa medida, a imagem e o som melhoram bastante, mas não a ponto do telespectador notar a brutal diferença obtida nas telas maiores.


Considerando que a esmagadora maioria dos brasileiros tem televisores de 16 a 20 polegadas, 40% deles com antena interna (as duas varetas onde se pendura o bom-bril), a caixa conversora servirá apenas para eliminar os fantasmas, chuviscos e chiados, que inexistem na TV Digital. É uma vantagem e tanto, mas quem pagará o preço de dois ou três televisores analógicos atuais para tê-la? E se não há dinheiro para isso, quantos poderão investir nas telas de plasma ‘prontas para HDTV’ para ver novela em alta definição? Aliás, quem precisa de alta definição para ver novela?


Quer mais perguntas? Onde estão os celulares capazes de sintonizar TV Digital? Onde estão os televisores para carros, barcos, aviões? Quando vai começar a televisão móvel, a outra vantagem que – dizem eles – a nova tecnologia nos trará, visto que a interatividade ficará para as calendas gregas?


Seja bem-vindo, pois, à gloriosa TV Digital. Mas na noite do dia 2, aproveitando que é domingo, vá ao cinema. Lá você encontrará a qualidade que lhe prometeram, e que vai demorar para chegar à sua casa.

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Jornalista