Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Bisbilhotices, grampos e sigilo da fonte

A idéia de punir jornalistas que publiquem transcrições de grampos ilegais constitui, sim, uma séria ameaça à liberdade de imprensa. Essa ameaça está no projeto de lei enviado pelo governo no mês passado à Câmara dos Deputados, que modifica o artigo 151 do Código Penal e prevê reclusão de dois a quatro anos, além de multa, para quem ‘violar o sigilo ou o segredo de justiça das informações obtidas por meio de interceptação de comunicação de qualquer natureza’ ou ‘utilizar o resultado de interceptação de comunicação telefônica ou telemática para fins diversos dos previstos em lei’. O tema já foi objeto de análises aqui mesmo, nesta página (ver ‘Do valor de artigos exóticos‘, de Demétrio Magnoli), mas merece considerações.


Os defensores da medida alegam que a divulgação de escutas ilegais pode invadir privacidades. Quanto a isso, têm razão. Não obstante, em situações específicas, a relevância de certas conversas telefônicas impõe ao repórter que a elas tenha tido acesso o dever de levá-las ao conhecimento da sociedade. No mais, o projeto de lei está longe de ser solução para o risco de invasão de privacidades. Impor barreiras ao direito do cidadão à informação não é uma saída civilizada. Ao contrário, só piora as coisas.


Há casos em que a alternativa de publicação de escutas clandestinas precisa ser considerada. Foi o que se deu, como bem lembrou a revista Época em sua edição 541, de 27 de setembro, quando se noticiou o tráfico de influência na compra de equipamentos para o Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam) durante o governo Fernando Henrique Cardoso. O escândalo só veio à tona porque jornalistas descobriram o conteúdo de um grampo. Divulgando-o, cumpriram seu dever. A ironia é que, se valesse a regra que agora se pretende transformar em lei, eles correriam o risco de ir para a cadeia.


Jogo desequilibrado


Naturalmente, nenhum cidadão, seja ele editor, padre ou banqueiro, pode bisbilhotar diálogos confidenciais ou correspondências alheias, o que, de resto, já constitui crime previsto em lei. No entanto, quando tem acesso a confabulações que contenham a intenção de lesar os direitos do cidadão – obtidas por terceiros, ainda que de forma ilícita –, o jornalista deve ter a liberdade de publicá-las. Não lhe pode ser imposto o constrangimento de guardar segredos dos que agridem a lisura da administração pública. Nesse caso, a alegada privacidade dos envolvidos, que serve apenas de biombo para encobrir o malfeito, tem de se subordinar ao princípio maior que é o direito à informação do cidadão.


O projeto de lei quer forçar profissionais de imprensa a traírem seu ofício. Em lugar de pôr ordem na casa dos grampos desgovernados, quer castigar o mensageiro. O mais preocupante é que a iniciativa ganha corpo no bojo de declarações de autoridades pondo em xeque o princípio do sigilo da fonte. Em matéria de escutas ilegais, o sigilo não valeria e, em vez de expor seu conteúdo à sociedade, o jornalista deveria denunciar suas fontes às autoridades, como se perseguir e prender arapongas fosse tarefa de repórteres.


O que há por trás dessa mentalidade é a infeliz suposição de que a imprensa se deve pautar por parâmetros que lhe são estranhos e nocivos, a saber, as conveniências do poder – do governo ou do Estado.


Por mais incômodo que seja, nem mesmo as regras que valem para o Poder Judiciário podem valer do mesmo modo para o jornalismo. O juiz é obrigado a julgar com base nos autos – e só nos autos. A imprensa, ao contrário, garimpa no mundo real as evidências que os poderosos gostariam de manter soterradas e as torna públicas. Não raro, aliás, matérias jornalísticas ajudam a abastecer os autos. Se não gozasse dessa autonomia, a imprensa não valeria de nada; estaria reduzida ao papel de difundir as decisões que o poder já considera maduras para o conhecimento geral. O jogo democrático entraria em desequilíbrio.


Muito triste


Pretender melhorar o nível dos jornais com base em leis é uma veleidade autoritária, ainda que não seja produto de más intenções. Não é a lei, mas a ética da imprensa que deve cuidar dessa melhoria. Cabe à ética fornecer as diretrizes para a tomada de decisões dos veículos informativos. Por certo, a ética não recomenda que se abuse das informações sem origem.


De uma vez por todas, é preciso ter claro que a origem de uma informação é parte indissociável da qualidade dessa informação. Uma fonte só pode ser omitida em casos raros, extremos e excepcionais – o que se dá com o conteúdo de grampos clandestinos que, por sua gravidade, justifique a publicação. O recurso da informação ‘em off’ não poderia cair na banalização em que vem caindo, num rebaixamento ético que corrói a autoridade e a credibilidade da própria imprensa. Mas, mesmo diante dessa banalização, uma lei que intimide repórteres não apenas não resolve o problema como nos coloca um outro problema, ainda mais grave. Em resumo: se a lei não é capaz de melhorar a qualidade dos jornais, pode contribuir para degradá-la.


Só o que a lei pode e deve fazer, bem como as autoridades, é fortalecer a liberdade de imprensa, o que inclui a preservação do sigilo da fonte. Sem isso não se faz jornalismo. A imprensa é uma voz insubstituível da sociedade, não do Estado. Mais ainda: é a única voz capaz de se insurgir contra a lógica fria e escura do Estado. Não fosse ela, todos estaríamos mergulhados nas sombras opressivas do autoritarismo, de tinturas policiais, militares, fascistas ou populistas, tanto faz.


É triste, muito triste, que ainda tenhamos de debater esse tipo de obviedade. É triste ter provas, uma vez mais, de que nossa cultura política média, comprovada e desgraçadamente, ainda não compreendeu a essência da função dos jornais livres.

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Jornalista, professor da ECA-USP e pesquisador do IEA-USP