Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Carta aberta à atriz Ruth de Souza

Querida Ruth, não vou me estender em elogios porque os filmes e novelas atestam sua brilhante competência em admiráveis e adoráveis atuações.


Escrevo porque penso ter desvendado o mistério de uma cena muito antiga. Há muitos anos, o Fantástico, se não me engano, entrevistou várias pessoas, perguntando-lhes o que fariam se ganhassem um prêmio de ‘zilhões’ acumulado em um desses jogos de loteria.


Surpreendeu-me a singeleza de sua pretensão, um sonho pequeno para tão grande astro. De olhar baixo, a voz pesada e ressentida, amarga de mágoa, você disse: ‘Se eu ganhasse sozinha esse prêmio, eu compraria uma capa. Uma capa de revista. Eu nunca tive uma capa de revista.’ Você respondeu como quem perguntasse o porquê da injustiça.


Outro dia eu a vi em uma TV Educativa, numa matéria sobre as grandes contribuições femininas para cinema brasileiro, e me pus a pensar. Comparando você com Regina Duarte, Vera Fisher, Glória Menezes ou mesmo os novos talentos, dignos das capas de revista, não encontrei diferença na atuação, na habilidade ou na simpatia.


Reparando bem, constatei, no entanto, o que pode ser a resposta para aquela indagação: seu biotipo. Ele é incompatível com o das protagonistas. Você tem lábios largos, cabelo crespo e pele preta, herança de imigrantes dos porões dos navios de Castro Alves. Você não se parece em nada com as principais personagens.


Vida e arte


Querida, quantas negras, ricas empresárias, estão à frente de multinacionais? Você conhece, Ruth, alguma juíza ou desembargadora negra? Fale-me: quantas médicas renomadas, bem-sucedidas, são pretas? Qual negra é proprietária de um estabelecimento maior que um botequim? Quantas famílias de negros ganham 20 salários mínimos? Em qual universidade há predominância de alunos negros? Será que na Bahia?


Repare nas novelas que estão fazendo sucesso, Ruth. Qual papel caberia a uma atriz afro-descendente que está iniciando a carreira? Aqueles que você dignamente celebrizou: camareiras, humildes mães de família, empregadas domésticas, trocadoras de ônibus etc. – dignas confidentes, zelosas governantas, competentes e carinhosas Tias Anastásias, no entanto, serviçais. Se jovem, a atriz tem a alternativa de exibir suas esculpidas carnes sob o nome de beleza brasileira. Ruth, os artistas negros ainda fazem papel de escravo.


Vida e arte – onde está o simulacro?


Sei que você não ganhou na loteria sozinha. Então, não espere pela capa. Segure minha mão, amiga. Vamos, pelos menos, desmascarar essa farsa.

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Professor de Língua Portuguesa, Belo Horizonte, MG