Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Celebridades, autocomplacência e o valor da imprensa

‘Philip […] teve saudade daquela gente. Tinham os Altheny uma qualidade […] que era a bondade. Só agora percebia isso, mas era evidentemente a beleza daquela bondade que o atraía. Em teoria, não acreditava em semelhante coisa: já que a moral era simples questão de conveniência, bem e mal não tinham sentido. Não gostava de ser ilógico, mas tinha ali diante de si uma bondade simples’ (William Somerset Maugham, Servidão Humana)

‘Eu não queria fazer mal. Não sabia como isso iria ser […]. Não sabia o que estava fazendo […]. Não sabemos. Não vemos: é tão fácil falar quando não se sabe. Nós nos enlouquecemos com palavras’ (O capelão, in Bernard Shaw, Santa Joana)

Na sua edição do mês passado, a revista Monet, da Editora Globo, publicou uma reportagem com o apresentador de televisão e ator Paulo César Peréio. Por um lado, ele declara achar sensacionais Carmen Miranda e Marilyn Monroe – sobretudo, de cada uma, o ‘ícone dela’. Por outro lado, Peréio ataca feroz e desdenhosamente o programa de televisão Ashley Judd: Uma Luta contra a AIDS na Índia. Vejamos as palavras exaltadas de Peréio a propósito do programa com a atriz hollywoodiana:

‘Acho isso uma babaquice. Sou contra assistencialismo. Sou contra caridade. Desprezo isso, principalmente porque rola muita publicidade para essas pessoas, esses astros de Hollywood. Acho que existem maneiras muito mais inteligentes para se ajudar essas pessoas pobres, doentes, necessitadas, sei lá. Dinheiro só não ajuda, um programa na TV não ajuda. Os problemas são muito mais complexos, de infra-estrutura mesmo.’

A atriz norte-americana Ashley Judd é embaixadora do YouthAIDS, ligado à ONU e empenhado tanto em combater o estigma sobre o assunto e em prevenir e impedir o alastramento do vírus da AIDS (sobretudo nas regiões onde há maior risco de ocorrer uma pandemia), quanto em ajudar diretamente pessoas portadoras de HIV e apoiar diferentes instituições dedicadas à questão.

O programa comentado na reportagem é um documentário, narrado pela própria Ashley Judd, a propósito de uma viagem que a atriz fez a várias regiões da Índia – o programa foi recentemente exibido no Brasil, no dia 8 de março. Nesse programa, ela procurou uma atriz indiana e, depois, o ator considerado o mais popular da Índia, para participarem de eventos juntos com ela e o ator gravou uma propaganda para ser veiculada no país. No dia 7 de abril, foi apresentado um programa semelhante, porém passado na Guatemala, na Nicarágua e em Honduras: dessa vez, ela levou a colega de profissão Selma Hayek. Ashley Judd diz sobre seu trabalho como embaixadora do YouthAIDS: ‘Mais do que atuar e do que tudo que ocorre em Hollywood, essa é minha paixão.’

‘Não há como mudar o passado’

Na viagem à Índia, Ashley Judd conhece uma mulher que contraiu AIDS do marido, ficou impossibilitada de trabalhar durante anos, sendo sustentada pela filha, então uma criança, que pedia esmola nas ruas de Bombaim. Quando a atriz a conhece, ela está recuperada da doença, a filha é uma adolescente que passou a estudar e a mulher participa de projetos junto a hospitais e clínicas para ajudar outras portadoras do vírus. Depois, Judd vai a uma região de prostituição conversar com prostitutas, ao mesmo tempo potenciais vítimas e vetores de disseminação do vírus e da doença: ela procura saber sobre o que essas mulheres conhecem e fazem a respeito do assunto – conhecem pouco e podem fazer menos ainda. Fica sabendo que, na Índia e em países vizinhos, é comum as famílias pobres venderem suas filhas pequenas, que acabam forçadas a se tornarem prostitutas – ela interage com as prostitutas.

Na continuação, Judd conversa com caminhoneiros que costumam fazer sexo sem proteção com prostitutas. Mais da metade dos trabalhadores da Índia tem o vírus. Em outro momento da viagem, ela conhece uma garota de programa. Ainda em outro momento, ela conhece duas irmãs, de quatorze e doze anos, órfãs, cujos pais morreram de AIDS: conversa com elas, para saber sobre suas vidas e seus pais – elas são criadas por uma avó, trabalham de dia e estudam à noite.

Na saída da residência, Judd lembra que elas têm exatamente o perfil de quem pode ser vendida pela família e obrigada a se tornar prostituta. Judd participa de eventos e de conferências na própria Índia para arrecadar fundos e informar sobre o que ela conheceu na sua viagem. No fim, ela conhece uma muçulmana, casada com um caminhoneiro; a atriz fica espantada com a situação da mulher, mantida em completa ignorância, que nunca ouviu falar na doença nem em preservativos – ao contrário do marido.

Na América Central, o número de infectados é muito grande (quatrocentas mil pessoas) e aumenta rapidamente, havendo o risco de ocorrer uma pandemia. Na Guatemala, ela e Selma Hayek vão a uma das piores partes da capital, um gueto que concentra prostitutas pobres. Apesar do trabalho ostensivo feito pelo YouthAIDS, 10% das prostitutas do país são portadoras do HIV. As duas atrizes conversam com as prostitutas, se informam sobre as tragédias e os abusos pelos quais elas passaram, perguntam o que elas sabem sobre AIDS e sobre prevenção e acesso a preservativos e se costumam usá-los. As prostitutas são mais conscientes sobre o assunto que as mulheres do país, em geral. As atrizes se informam sobre as condições de trabalho, de vida e de família das prostitutas. ‘Como não podemos mudar o passado delas nem transformar radicalmente as circunstâncias’, diz Ashley, ‘podemos ajudá-las a não adoecer.’

Duplicar verba para AIDS

Depois, vão para um dos bairros mais ricos da cidade, onde conhecem uma família cujo filho morreu de AIDS e que construiu duas clínicas para ajudar os pacientes da AIDS. Na cidade de Coatepeque, próxima ao México e ponto de trânsito entre a América Central e os Estados Unidos – onde o índice de infecção do HIV é maior do que média nacional –, a atriz conhece um centro que é um dos poucos lugares no país em que se faz o exame do HIV e onde as pessoas procuram informações e recebem ajuda. Lá ela conhece alguns doentes e algumas portadoras do vírus que trabalham no centro. No caso de uma dessas mulheres, o marido e o primeiro bebê, com oito dias, morreram de AIDS.

Judd conhece ainda um casal portador do vírus cujo primeiro filho morreu da doença e que espera o segundo bebê: eles recebem ajuda do centro para tentar dar uma vida saudável ao bebê que virá. A mãe mostra-se preocupada por ter que fazer cesariana, Ashley Judd a conforta dizendo que ela própria nasceu de cesariana. Judd nos informa que mais de um terço dos bebês de pais infectados nascem infectados, mas com o tratamento durante a gravidez como o que aquele centro proporciona, esse índice cai significativamente para 8%.

Num outro centro, Hayek conversa com uma mulher portadora da AIDS que teve um filho morto pela doença. A mulher diz que não sente força emocional para enfrentar a doença, que é muito triste pela morte de seu filho e que tem medo do que acontecerá com seus outros cinco filhos. ‘Eu já perdi um filho.’ Hayek a conforta carinhosamente:

‘Mas não perdeu tudo, você ainda está aqui. Seus filhos estão bem, você tem sorte. […] Você tem muita vida no olhar, não vai morrer logo. Vamos ver o que podemos fazer para ajudar seus filhos.’

Depois, as duas conversam com um homem portador do vírus que não tem acesso ao medicamento – que custa quarenta dólares por dia. Judd responde que elas vão conversar com o presidente da República para ver o que pode ser feito em casos como esse: ‘Não digo que ele vai dar uma resposta, mas vou levar a mensagem.’ Mais tarde, elas se encontram com o presidente: o encontro, coberto pela imprensa, incentiva o presidente a propor que a verba destinada aos doentes de AIDS seja duplicada. Na Nicarágua, elas vão e um centro que ajuda mães e crianças. Depois, gravam um anúncio com atores de um famoso seriado no país. Em Honduras, conhecem um centro que trata crianças com o vírus.

Longe de ‘mero assistencialismo’

Por um lado, Peréio assume uma postura evidentemente condescendente com ‘essas pessoas pobres, doentes, necessitadas, sei lá’, condescendência que Ashley Judd e os demais participantes do projeto nítida e conscientemente evitam. Por outro lado, o apresentador e ator brasileiro é ostensivamente autocomplacente, como fica claro ao evidenciar seu desprezo por ‘isso’ que ele considera mero assistencialismo, mera caridade, mera demagogia que serve principalmente para gerar publicidade para os artistas que participam do programa. Ambas as atitudes de Peréio, a de condescendência e a de autocomplacência, são dois lados da mesma moeda.

O apresentador brasileiro acha ‘que existem maneiras muito mais inteligentes’ para ajudar as pessoas, mas não é generoso em esclarecer para Ashley Judd, em particular, e para todos nós, em geral, qual seria uma única dessas maneiras. O comportamento autocomplacente dele transforma-se numa atitude ostensivamente arrogante. Como a atriz hollywoodiana e todos nós somos burrinhos, ficamos sem saber que ‘maneiras muito mais inteligentes’ são essas. Então, provavelmente é por não conhecer pelo menos alguma de todas essas outras ‘maneiras muito mais inteligentes’ que Ashley Judd faz da maneira pouco ou nada inteligente. Mas, cabe lembrar, Ashley Judd tem consciência das limitações do que faz.

Do mesmo modo, Peréio não esclarece como tem conhecimento para afirmar que ‘dinheiro só não ajuda’ e que ‘um programa na TV não ajuda’. Efetivamente, dada a falta de evidências de que ele teria conhecimento para fazer essa afirmação, parece se tratar apenas da sua autocomplacência o que lhe permite fazer essa afirmação dogmática.

Autocomplacente até a raiz de seus poucos cabelos brancos, Peréio ou não assistiu ao programa ou, se assistiu, não pôde ver que ninguém no programa acha que a questão seja de ‘dinheiro só’. O programa mostra claramente que as atividades desenvolvidas estão longe de ser o ‘mero assistencialismo’ suposto equivocadamente pelo apresentador brasileiro.

Transformação e enobrecimento

Cabe ressaltar, a condescendência e a autocomplacência de Peréio contrastam com a ausência de condescendência e de autocomplacência de Ashley Judd e dos demais participantes desse projeto. Assistindo aos programas, percebemos que Judd, Hayek e os demais não se sentem superiores aos portadores do vírus e às crianças órfãs de pais que morreram de AIDS: cabe lembrar a ausência de condescendência de Hayek ao falar para a mulher com seis filhos que se lastima. É inimaginável que Judd, se referindo a essas pessoas, usasse termos como ‘pobres, doentes, necessitadas, sei lá’ ou equivalentes.

Então, ao invés de achar, como Peréio, que ‘rola muita publicidade para essas pessoas’, ‘astros de Hollywood’ (mas certamente não apenas: pode-se incluir tanto astros do esporte norte-americano quanto ex-presidentes democratas como Jimmy Carter e Bill Clinton etc.), é possível considerar que essas pessoas geram publicidade tanto para a causa em geral (sobretudo para o combate ao estigma) quanto para as diferentes pessoas que precisam de assistência e para as instituições genuinamente empenhadas em ajudar essas pessoas. Efetivamente, não é o caso de essas pessoas ganharem publicidade com a causa – é justamente o contrário: elas geram publicidade para a causa; no entanto, mesmo que elas se beneficiassem da publicidade, isso não deveria ser motivo (muito menos o motivo principal) para considerar que suas atividades não são válidas. Peréio parece compartilhar do princípio de que as pessoas só são capazes de praticarem boas ações, de serem altruístas, benevolentes, na medida em que isso é conveniente para elas e, portanto, essas boas ações, esse altruísmo e essa benevolência não são genuínos e, assim, não são válidos.

É o princípio cínico de Cronshaw, personagem de Servidão Humana de Maugham: a história de Philip, protagonista do romance, é a história da mudança pessoal e do crescimento de caráter pelos quais ele passa – transformação e enobrecimento entrevistos na passagem colocada acima como epígrafe – em contraste com o sistema de pensamento do velho poeta Cronshaw que, cerca de cinco anos antes, impressionara o jovem Philip, então com vinte anos.

Enunciado obscuro e irracional

Certamente, de alguma maneira, Ashley e os demais participantes (como o ator indiano ou o roqueiro nicaraguense) se beneficiam de suas atividades no projeto: evidentemente, nenhum deles passa por um tormento pessoal ao participar das atividades; tanto Ashley quanto Hayek, enfatizam como gostam bastante, no âmbito pessoal, de participar dos diferentes eventos e do contato com as diversas pessoas, incluindo homens e mulheres doentes, crianças órfãs ou filhos de pessoas doentes. Mas especular sobre o benefício da publicidade que ‘rolaria’ para essas pessoas, ao invés de considerar a publicidade que elas geram para os projetos – invertendo completamente a relação entre personalidade e publicidade –, diz menos sobre essas pessoas do que sobre quem faz esse tipo de afirmação dogmática e radical.

Enfim, cabe ressaltar um aspecto importante. Não é que o apresentador brasileiro se limite a não ser favorável a projetos como aquele de que Ashley Judd participa: ele é radicalmente ‘contra’ – e diz isso enfaticamente. Ele não se restringe a não apreciar esse tipo de projeto: ele despreza ‘isso’ – e fala com soberba de seu desprezo. Fica bem claro: ele é sumariamente contrário a métodos graduais na luta contra o sofrimento – ele não dá nenhuma importância seja para o alento, o conforto e as mensagens de ânimo que as pessoas aflitas possam receber seja para as medidas de prevenção e de combate ao estigma associado à doença.

O apresentador brasileiro se opõe veementemente, e com desdém, a mecânicas sociais práticas, de características graduais, como a dos projetos do Youth AIDS do qual Judd participa. Ele julga sua inteligência superior a de outros e, assim, fala da existência de ‘maneiras muito mais inteligentes’ para resolver os problemas ‘muito mais complexos’ – o que a pouca inteligência dos outros não conseguiria perceber. Enquanto Judd e seus amigos e os projetos de que eles tomam parte são clara e racionalmente conscientes de suas limitações, o apresentador brasileiro faz um discurso pretensamente superior: ele não se importa com a diminuição do sofrimento – ele despreza isso; ele aspira a coagir (pelo menos, moralmente) os outros às ‘medidas muito mais inteligentes’ que só iniciados, como ele, podem conhecer.

Enquanto Judd advoga e pratica a existência de um meio comum de comunicação, de uma linguagem comum da razão, o apresentador brasileiro pretende saber aquilo que é obscuro para os não-iniciados. O projeto e o programa de Judd apresentam padrões de clareza e de racionalidade; o enunciado do apresentador brasileiro é obscuro, irracional e às beiras da histeria.

Inutilidade prática

O discurso radical e dogmático do apresentador brasileiro é expressão de uma revolta contra o gradualismo de projetos como o do YouthAIDS: na sua atitude intelectualista, ele considera as mecânicas graduais e racionalistas lugar-comum demais para o seu gosto. Assim, enquanto em Judd a experiência é usada para alicerçar o que fazer e há conseqüências práticas – uma atitude racionalista –, no apresentador brasileiro a irresponsabilidade intelectual se evade para a verborragia. No dogmatismo, não há argumentação, nada restando além da total aceitação ou da absoluta repulsa:

‘Acho isso uma babaquice. Sou contra […]. Sou contra […]. Desprezo isso […]. Acho que existem maneiras muito mais inteligentes […].’

É preciso aceitar peremptoriamente a existência daquelas outras maneiras muito mais inteligentes, assim como se deve desprezar o que ele rejeita. Há no discurso do apresentador brasileiro o uso, incluindo a repetição, de palavras impressionantes, fazendo parecer que ele oferece algo de novo – mas trata-se apenas de truque trivial de retórica ordinária, tipicamente dogmática, sem qualquer vestígio de apreço pela argumentação. Para usar os termos de Bernard Shaw antepostos aqui como epígrafe, é fácil enlouquecer com palavras.

Toda essa atitude – a postura de iniciado, a pretensa superioridade moral, a absoluta regativa e a peremptória aceitação, os truques retóricos de impacto – é muito divertida para quem a adota. Tem ainda a vantagem, para ele, de não se dar ao trabalho de formular argumentos – o que é sempre mais árduo e difícil. Em contrapartida, essa atitude se caracteriza pela inutilidade prática.

Condescendência e intolerância

Em tempo: não obstante as considerações acima, este artigo não tem como objetivo principal tratar do programa com Ashley Judd e de sua atuação nos projetos do YouthAIDS: o texto teria que ter outra direção se fosse esse seu objetivo. Do mesmo modo, o intuito deste artigo não é fazer uma crítica à pessoa do apresentador de televisão e ator brasileiro. Simplesmente, não tive (e não tenho) a intenção de criticar uma pessoa idosa que tem opiniões dogmáticas, radicais e fundamentalistas que o senso comum erroneamente costuma atribuir aos jovens.

A propósito: já se disse, em outro lugar, que é uma mentira – propagada aos jovens pelas pessoas mais velhas – que os jovens não possuem a sabedoria que têm pessoas mais velhas. Os jovens tendem a acreditar na mentira que lhes é dita, só descobrindo tratar-se de uma mentira quando se tornam velhos; aí, são eles que passam a dizer para a nova geração a mentira, de modo que por gerações sucessivas essa mentira é tida e repetida como senso comum. Não é uma questão de idade: uma pessoa que quando jovem é estúpida, que com 40 anos continua sendo estúpida e que com 50 anos permanece tendo idéias e opiniões estúpidas, muito provavelmente quando tiver 60 ou 70 anos terá se tornado uma pessoa idosa bastante estúpida. Neste sentido, e em contrapartida, uma pessoa não se torna melhor devido apenas ao simples efeito da passagem do tempo: a melhora deriva de seu esforço, de sua capacidade e de seu caráter.

Então, retomando: o enunciado do apresentador brasileiro não precisa, em si, ser levado demasiadamente a sério – ele é apenas epidérmico. No entanto, apesar de sua superficialidade, ele exprime um perigo, esse sim, profundo: o da disseminação na sociedade tanto da condescendência, da autocomplacência e da intolerância quanto do desapreço e do desdém por mecânicas sociais práticas e graduais como aquela do projeto de Ashley Judd. O propósito básico deste artigo – muito diferentemente de elogiar o comportamento da atriz norte-americana e o projeto do qual ela participa ou de criticar as opiniões dogmáticas do apresentador brasileiro – é tratar do valor da imprensa.

O que pensar da publicidade?

O escritor inglês Somerset Maugham assinalou, em seu Exame de Consciência: ‘O valor da cultura é o seu efeito sobre o caráter. Não adianta, a menos que enobreça e fortaleza. A sua utilidade é para a vida. O seu alvo não é a beleza, mas a bondade’ (a tradução, cabe apontar, é de Mario Quintana).

Por ocasião da Feira Literária de Parati do ano passado, escrevi um artigo a propósito da obra de Coetzee, contrapondo-lhe, de maneira sucinta, a obra de Salman Rusdhie (principalmente Shalimar, o Equilibrista; O Último Suspiro do Mouro e Versículos Satânicos) e romances de Ian McEwan (Reparação), de Orhan Pamuk (Neve), entre outros (cabe acrescentar agora a obra de Maugham, que não incluí naquela oportunidade porque, então, enfatizava obras contemporâneas): a questão de que tratei naquele artigo era a do valor da literatura; o tema era justamente o enunciado na formulação de Maugham acima (embora não tenha nem mencionado seu nome nem usado os termos de seu enunciado). Neste sentido, cabe assinalar: no meu entender, obras como a de Rusdhie e de romances como o de McEwan e de Pamuk abrangem o efeito enobrecedor sobre o caráter, enquanto na obra de Coetzee não há sinal de nobreza do caráter (a propósito: o que foi dito naquele artigo sobre a obra de Coetzee também pode ser estendido para o novo best seller As Benevolentes, de Jonathan Littell).

O que ocorre nos personagens de Coetzee (assim como no narrador, ex-carrasco nazista, do romance de Littell) não é a formação ou o fortalecimento do caráter dos personagens (certamente, a questão é precisamente que não há nenhum engrandecimento do caráter de qualquer personagem), mas a autocomplacência desses personagens – e, pelo que foi dito sobre a participação de Coetzee na Flip ano passado, a auto-complacência do próprio escritor – sem nada que funcione em contraposição a essa auto-complacência. A imprensa especializada e os críticos literários que costumam elogiar os romances de Coetzee (ou o de Littell) se detêm em questões estritamente formais da literatura, negligenciando a questão do valor da literatura (efetivamente, os aspectos formais somente devem ser considerados à luz da questão do valor).

Finalmente: o mérito da imprensa também pode – e deve – ser avaliado segundo aquela formulação feita por Maugham referente ao préstimo da cultura. Parcela considerável da imprensa parece se deleitar com a pretensa beleza contida na autocomplacência de determinadas celebridades, parecendo não conhecer nem relevar qual deve ser o valor da imprensa em particular e da cultura de maneira geral. Assim, ou essa parte da imprensa simplesmente compartilha aquela autocomplacência de determinadas celebridades (seus valores convergem, ou coincidem em algum grau, com os dessas pessoas afamadas) ou então ela, confundindo neutralidade com imparcialidade jornalística, tem a sua própria autocomplacência (nesse caso, ela diz que não necessariamente concorda com os valores da celebridade, mas seu papel limitar-se-ia simplesmente a registrar o que é enunciado pela celebridade).

Efetivamente, não há neutralidade possível nessas reportagens: elas são ostensivamente favoráveis (e, nas mais das vezes, pretensamente divertidas, como ocorre na reportagem com aquele apresentador brasileiro) quanto à autocomplacência da celebridade. Assim, para esse setor da imprensa, são mais interessantes as atitudes condescendentes e auto-complacentes de determinadas celebridades do que o envolvimento e a participação de certas personalidades em projetos positivos. E, afinal, pode-se perguntar: o que devemos pensar a propósito da publicidade (venal?) que ‘rola’, nessas reportagens, para celebridades condescendentes e autocomplacentes?

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Bacharel em História e doutor em Filosofia pela FFLCH-USP, Campinas, SP