Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

‘Como embedded, você vira menos imparcial’

Uma mala com colete e capacete à prova de balas e algumas mudas de roupa. Um aparelho de acesso de dados e voz para se comunicar e enviar, de um lugar distante, as matérias para o Brasil. Lenços umedecidos para ajudar nos dias sem banho. Foi com essa bagagem que a repórter especial Patrícia Campos Mello, de O Estado de S. Paulo, embarcou em julho do ano passado com destino ao Afeganistão para uma experiência embedded, ou seja, jornalista embutida nas tropas americanas no país, acompanhando o front de guerra, dormindo e acordando ao lado dos soldados estadunidenses e participando de missões e patrulhas.

O início da ‘aventura’ se deu quatro meses antes do embarque, quando Patrícia era correspondente em Washington e foi convidada a participar de uma palestra sobre a visão da imprensa internacional sobre os EUA. O processo seletivo levou em torno de quatro meses; ela teve todos os seus antecedentes checados pelo Pentágono antes de ser aprovada. O programa embedded foi criado porque a imprensa se queixava do difícil acesso às operações no front durante a guerra do Golfo. Ele passou a ser praticado com frequência em 2003, ano da invasão americana no Iraque. Apenas um jornalista é aceito por pelotão, que tem quarenta soldados. Patrícia ficou instalada nas bases das tropas por três semanas e passou oito dias em Cabul.

‘Você não pode usar nenhum material sintético’

Como surgiu o convite para acompanhar os soldados no front?

Patrícia Campos Mello – Em 2009, eu era correspondente internacional em Washington. Em março, fui convidada pelo exército americano para dar uma palestra no Kansas sobre como a imprensa estrangeira se relacionava com as Forças Armadas americanas. No final da exposição, um general perguntou se eu já havia pensado em fazer embed no Afeganistão. Disse que sim, claro, pois gostaria de testemunhar o conflito e não só falar sobre ele da minha redação confortável. Liguei para o jornal e logo me perguntaram quanto custaria. Eu não sabia, mas achava que não sairia caro. Eu fiz uma application, espécie de treinamento para jornalistas que vão ao front. Em julho recebi um email de confirmação. Havia sido aprovada e logo em seguida já embarcaria rumo ao Afeganistão.

Quais as instruções de segurança que você recebeu para ir?

P.C.M. – Eu precisava levar na bagagem um colete à prova de bala específico e também capacete, que aluguei nos EUA. É preciso, também, aprender a usar um transmissor de dados via satélite. Uma amiga minha falou para eu levar lenços umedecidos, de bebê mesmo, já que às vezes seria meio difícil tomar banho por lá. Ao chegar à base, você recebe um briefing com instruções do tipo ‘não fique para trás dos soldados, não dê localização exata antes de a operação acontecer’ e outras coisas do tipo. Existiam algumas regras relacionadas ao país, como o uso do véu; tinha de estar com ele sempre. Também aprendi a fazer torniquete. Mas isso, no Afeganistão, era algo secundário. O que pegava mesmo eram as bombas. Você não pode usar nenhuma roupa de material sintético, nem lentes de contato, porque o calor, antes da bomba e depois, queima; faz com que as roupas e as lentes derretam e grudem em você. Mas confesso que desobedeci e continuei usando minhas lentes!

‘Os afegãos não vão deixar de abrigar armas e esconder talibãs’

Como era sua segurança, como jornalista, e o que você estaria impedida de fazer?

P.C.M. – A maior preocupação dos soldados é a de manter você perto deles. Eles tinham medo que eu fosse sequestrada e virasse moeda de troca. O programa não se responsabiliza se você se machucar; também não há seguro de vida pago pelo jornal. Então, nas patrulhas, eu não podia me distanciar dos soldados. Uma vez, saí do tanque e fui caminhar. Escutei um berro: ‘Onde você pensa que está indo? Tem muitas minas debaixo do chão!’ Eu também não podia perguntar aos soldados o que eles achavam sobre a validade da guerra ou outras questões políticas. Mas logo no primeiro dia que eu cheguei lá, sentei-me para comer e todos eles se sentaram em volta e começaram a conversar.

E o que os soldados americanos acham da guerra?

P.C.M. – É impossível que eles não comentem o que acham. Você passa 24 horas por dia ao lado deles, dorme, acorda, toma café da manhã, vai às missões. A conversa flui de forma natural; fatalmente eles se tornam seus amigos. Então, dizem muitas coisas que não diriam normalmente. Eles diziam: ‘Olha, eu não sei o que eu estou fazendo aqui, essa guerra é uma imbecilidade’, ou ‘Olha, a gente está aqui numa missão que não é nossa. A missão é construir escolas, estradas, fazer amizades. E a gente não sabe fazer isso, a gente não foi treinado pra isso.’ Além do que os afegãos já passaram por essa situação diversas vezes: primeiro vieram os britânicos, depois, os soviéticos. Então os soldados sabem: ‘Por que que é que os afegãos vão confiar nos americanos se amanhã os EUA vão embora e deixam o país como está?’ Os afegãos tratam bem os americanos, mas não vão deixar de abrigar armas e esconder os talibãs. Então, esse é um tipo de conversa que eles tinham quando não deveriam ter. Mas isso era algo que não dava para controlar, o assunto aparecia.

‘Nenhum civil se sente à vontade para conversar’

Você podia publicar tudo o que eles te contavam?

P.C.M. – Se a fonte diz que não é para publicar, eu não vou publicar. No Brasil, não se publica quando a gente fala ‘em off’. Mas nos Estados Unidos existe off the record, que significa que você não pode publicar, de forma alguma. Se a fonte fala background, aí sim, você publica, mas sem dar o nome dela. Agora, quando você está batendo papo com os soldados, eles sabem o que podem e não podem fazer. Se eles te contam alguma coisa é porque de alguma maneira eles querem desabafar. Mas, se ele me disser algo, mas não me der o nome dele e eu sei o nome dele e sei também que isso pode prejudicá-lo, eu não vou publicar, claro. É mais importante a vida do cara do que a minha matéria, concorda?

A relação com os soldados, em ver apenas um lado, compromete a matéria? Ela pode ficar tendenciosa?

P.C.M. – Então, eu acho que embedded tem que ser só uma parte da cobertura. É uma visão completamente unilateral, é um pedaço da guerra; você está vendo tudo aquilo do ponto de vista de um exercito, que está te alimentando, te dando abrigo. É muito difícil não manter certa empatia. É eticamente complicado. Por isso que eu acho que o ideal de cobertura é isso, ir embedded, ficar no front e ver como é a guerra. Falar com os soldados. Mas isso é uma visão parcial. Depois, você deve ir aos civis.

E você tinha acesso aos civis como embedded?

P.C.M. – Sim, quando fazíamos patrulhas ou saíamos para ver como estava a construção de um sistema sanitário, por exemplo. Nessas situações eu ficava próxima aos afegãos. Mas, com muitos soldados ao seu redor, nenhum civil se sente à vontade para conversar. É como se você quisesse entrar numa favela do Rio de Janeiro embedded no Bope. Ninguém vai querer falar com você.

‘Mulher não é uma ameaça!’

Quais as vantagens e desvantagens do embedded?

P.C.M. – O bom é que você vai ao front, vê o dia-a-dia dos soldados, acompanha as patrulhas. O ruim é que, como o Gay Talese já disse, você acaba criando empatia entre os soldados, você não os vê como máquinas de matar gente, mas como pessoas. Então, você fica um pouco menos imparcial. Por causa disso, eu fiquei alguns dias em Cabul, pois queria ter os dois lados. Por três dias, fiquei num abrigo para mulheres abusadas. Fiz matérias com essas mulheres, com os afegãos…

O que foi mais difícil para você durante o programa?

P.C.M. – Uma das coisas mais difíceis foi uma vez em que tivemos de dormir numa base militar do Afeganistão. O lugar não tinha luz, as paredes estavam cheias de buracos, eles fumavam haxixe o tempo inteiro e andavam com armas Kalashnikov grudadas com fita crepe. Os soldados americanos vão lá porque eles capacitam as tropas afegãs. Elas não têm muito dinheiro, não têm capacidade, são corruptas. Vendem armas e combustíveis que os americanos repassam, fazem frilas para o Talibã.

Existe preconceito contra a mulher jornalista?

P.C.M. – Acho que existe um tratamento diferente, mas que tem prós e contras. No Afeganistão, quando os soldados iam tomar chá com o chefe da tribo, os homens afegãos cumprimentavam os soldados e quando passavam por mim, simplesmente me ignoravam. Eu era uma não-pessoa ali! Muitas vezes era preciso convencê-los de que eu era jornalista, que precisava ficar junto com os soldados… Por outro lado, nessa matéria que eu fiz sobre as refugiadas, só mulher pode entrar nesse abrigo. Enquanto fui correspondente em Washington, era meio assim ‘Ah, é brasileira, jovem…’, com um ar um pouco de desdém. Mas acho que até me favorece porque pensam ‘Ah, mulher não é uma ameaça!’

‘Os americanos não vão ganhar nunca’

Você teve medo?

P.C.M. – Penso como meu pai [Hélio Campos Mello, diretor de redação da revista Brasileiros], que também cobriu uma guerra, a do Golfo, e viu corpos espalhados pelo front. Ele me disse: ‘Você não pode ser tão corajosa a ponto de ser morta, mas também não pode ser tão medrosa a ponto de ficar sem matéria.’ Às vezes, não parece que você está numa guerra. Mas você está numa guerra! São minutos de tensão para horas de tédio.

Quais as suas impressões do conflito?

P.C.M. – Deu para enxergar como é essa guerra. Os americanos nunca vão ganhá-la. Pelo trabalho deles, pelo número de baixa de civis. Soldados não acreditam na missão, não sabem o que estão fazendo lá. Os afegãos não confiam nos americanos. Para mim, uma hora essa guerra vai acabar da mesma forma que a do Iraque: os EUA vão se tocar que a popularidade do país está caindo e que é preciso arrumar algum motivo para sair da guerra e dizer ‘agora está tudo bem’.

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Estudante de Jornalismo, São Paulo, SP