Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Como esfaquear um consenso

Na terça-feira (19/5), enquanto o cardiologista Jaime Gold agonizava, vítima de um assalto por esfaqueamento em plena Lagoa Rodrigo de Freitas, o “cartão postal da Zona Sul do Rio de Janeiro”, dois jornais diários, produtos de uma mesma empresa jornalística, gerariam um dos episódios mais controversos sobre os tipos de enquadramento que uma determinada notícia pode gerar. E mais: sabendo-se do histórico teor conservador do conglomerado comunicacional que os edita e das leis de uma lógica mercantil que recomenda não “contrariar os interesses do patrão”, como se explicaria tal divergência? Que razões estão por trás de pontos de vista tão particulares? Existiria, então, uma hipotética autonomia editorial que pudesse justificar que peças de uma mesma engrenagem que fabrica acontecimentos, de uma hora para outra promovesse um curto-circuito no senso comum? Ou não é nada disso?

Estamos falando, é claro, do aparente posicionamento conflitante de O Globo e do jornal Extra ao noticiarem o assalto seguido de morte do médico.

O primeiro, numa explícita defesa que legitime tramitações congressistas que aprovem a redução da maioridade penal, promove o tradicional discurso de convencimento que se divide em dois recortes. Em primeiro lugar, que menores em conflito com a lei, como o jovem de 16 anos, autor do assassinato do cardiologista, são “criminalmente irrecuperáveis” e naturalizariam um instinto assassino que cotidianamente os afasta de pormenores civilizatórios que pudessem ressocializá-los. As provas da teoria lombrosiana de O Globo são um levantamento da extensa folha corrida do rapaz, que teria recebido a sua primeira autuação aos 12 anos, por furto e roubo. O segundo petardo viria com a descrição minuciosa da vida do médico, contrapondo-se propositalmente com os descaminhos de um delinquente. Então surge o bem-sucedido e competente profissional, o detentor de um bom-mocismo inconteste entre seus pares, exteriorizado na tolerância econômica para com seus humildes pacientes, incapacitados de financiar os próprios remédios. O dedicado chefe de família, em pleno vigor de saúde, que ajudou a criar, sozinho, os dois filhos, frutos de um casamento que naufragou, e que costumava conversar com frentistas de um posto de gasolina e funcionários de um estacionamento.

Há um completo desconhecimento sobre os processos de negociação deontológica entre as duas publicações em casos como esse. Mas é inegável que o Extra resolveu escolher um caminho menos óbvio, portanto mais incômodo. Talvez por isso, objeto de tamanha curiosidade. O jornal se posiciona, como convém à ética da emoção, em lamentar a morte do profissional da saúde. Mas interrompe o luto, iniciando uma semana de reportagens que tentam dialogar as falências de um sistema que produz meninos como o seu assassino. Família disfuncional (pai morto e mãe usuária de drogas), sem escola, nascido e criado na favela, vivendo nas ruas e praticando roubos e furtos. Estão aí todos os elementos que poderiam fortificar mais uma narrativa que compõe uma fórmula de sucesso, aquela cujo pessimismo do noticiário é aritmeticamente proporcional ao seu consumo.

Discurso conservador e moralizante

Porém, o Extra nadou contra a corrente de um rio caudaloso. Evitou (pelo menos por enquanto) a normalização de um discurso que endossa o quanto as diferenciações de uma sociedade não fazem parte, somente, de uma zona de conforto para quem está do lado dos privilégios e das oportunidades, mas, sim compõem uma cláusula pétrea tácita que, se modificada, gera ações, tensões e, principalmente, consequências. Com isso, procurou anestesiar, ainda que com focos de resistência acerca dessa compreensão, o ódio em torno de seu objeto noticiabilizado, “o menor infrator”. Entretanto, a experiência resultou em um efeito colateral inesperado: o ódio nos comentários das matérias na versão eletrônica do periódico foi direcionado, também, para o próprio jornal. Tudo porque, ironicamente, utilizou-se um tipo de clichê, advindo especialmente de uma percepção cultural mais à direita, em que qualquer análise descompromissada com as verdades absolutas de uma certa criminologia seria fatalmente traduzida como “romantizar o banditismo”. Ou, como prefere o atual pensamento reacionário e extremista de muitos indivíduos raivosos nas mídias sociais: complexificar a trajetória de um indivíduo criminalizado é enaltecer o “coitadismo”, é permitir o estabelecimento de uma “vitimização dos vermes”. Prover, então, o “inimigo” de um passado, com ligações afetivas que foram barbaramente interrompidas, enfim, humanizá-lo, é inaceitável.

Vale lembrar, entretanto, que ao relativizarmos essa peculiar escolha editorial sobre o caso, estamos tratando do mesmo jornal Extra que, durante os últimos anos, foi uma das vitrines da política de segurança pública que implantou as Unidades de Policia Pacificadora (UPP) nos governos Sérgio Cabral e Pezão. Que, em novembro de 2010, durante a invasão do Complexo do Alemão, para a instalação de novas bases militares naquele conjunto de favelas, adotou (como adotaria em inúmeras edições seguintes) medidas discursivas enfáticas para a utilização da força sobre uma parcela da criminalidade que, supostamente, se encontraria em crise.

Com isso queremos dizer basicamente o seguinte sobre essas escolhas: não há uma explicação suficiente. Qualquer tentativa de reducionismo ou reapropriação pode resultar em uma estratégia arriscada. Foi um caso isolado? Talvez. Contudo, conseguiram a faceta de inovar no que fazem de pior e melhor no jornalismo há décadas: manipularam a audiência. Nas mídias sociais muito se falou em agradar a gregos e troianos. Que em posições opostas, Globo e Extra preencheriam, cada qual a seu tempo, suas cotas de apoio ideológico e quem se satisfizesse com o que lesse, simplesmente compraria uma ideia e assunto encerrado. É um raciocínio simplista? Não. Considerando que desde as manifestações de junho de 2013 ambas as publicações compartilharam modos de fazer jornalismo que ressiginificaram o discurso conservador e moralizante que sempre mantiveram, tirar da invisibilidade um problema que é esquecido por todos, ou seja, os caminhos a serem construídos acerca da noticiabilidade sobre a violência, é, no mínimo, inquietante.

Leia também

Uma empresa, dois jornais. Um abismo – Sylvia Debossan Moretzsohn

***

Fabio Leon Moreira é jornalista e mestrando em Comunicação