Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Como construir um avião em vôo

Caminante no hay camino/ El camino se hace al caminar… [Antonio Machado, poeta espanhol (1875-1939)]

Embora o processo de implantação da TV digital nos países europeus e nos EUA já tenha completado 10 anos, no Brasil pode-se dizer que recém dá seus primeiros passos com a chegada da TVD a São Paulo, em 2 de dezembro de 2007, e que ainda se encontra em fase de testes. Em capitais como Rio de Janeiro e Belo Horizonte, o processo de implantação já começou; nas capitais do Sul do país está previsto para o final de 2008 e nas demais deverá estender-se até 2009. De acordo com entrevista do ministro das Comunicações Helio Costa (25/6/2008) ao programa Bom Dia ministro, as capitais que desejarem antecipar a chegada da TVD deverão formalizar o pedido diretamente ao Ministério das Comunicações.

Mas as discussões sobre a escolha do padrão tecnológico tiveram início no final dos anos 1990 e, no começo do século 21, o governo Lula estimulou a cerca de 1.200 pesquisadores de universidades públicas, privadas e instituições de P&D a desenvolverem projetos tecnológicos para a TV digital brasileira.

A escolha do padrão japonês, em 2006, garantiu robustez, mobilidade, portabilidade, multiprogramação, uso dos modelos standard e/ou alta definição, interatividade em diferentes níveis, sistema aberto (não pago), interoperabilidade, troca de conhecimento entre japoneses e brasileiros, entre outros benefícios para o país. Entre eles, o projeto de interoperabilidade desenvolvido pelo midlleware Ginga, que permite que uma caixa conversora do sinal digital para uma TV analógica possa entender a linguagem tecnológica e ser usada nos diferentes padrões existentes para TV digital, como o europeu, o norte-americano ou o nipo-brasileiro, conhecido como ISDB-T (International Standard of Digital Broadcasting – terrestrial).

Outros itens contam a favor do modelo híbrido escolhido pelo governo brasileiro. Entre eles, a melhor compressão de vídeos, que torna possível transmitir o sinal simultaneamente em alta definição, em definição standard, móvel e também para celular de forma totalmente gratuita. Ainda assim, o modelo foi alvo de várias críticas que defendiam o uso de outros padrões para o país ou mesmo a criação de um padrão made in Brazil que demandaria mais alguns anos de estudos e testes.

Esclarecer as diferenças

Escolhido o modelo japonês e feitos os primeiros testes e ajustes em São Paulo [cidade com grande número de edifícios, durante mais de 40 anos a TV analógica conseguiu atingir com bom sinal apenas 15% da capital paulista. De acordo com estudos do Instituto Mackenzie (2008), em seus poucos meses de existência a TV digital chega com bom sinal a 85% dos lares de São Paulo. Os 15% restantes estão localizados em regiões distantes e se encontram em fase de ajuste], a TV digital começa a chegar a outras capitais, como um bebê que dá seus primeiros passos. No entanto, alguns pesquisadores e empresários ainda continuam criticando a implantação do projeto, ‘denunciando’ publicamente que a TVD paulista não ultrapassou a casa do 1% de audiência em seus poucos meses de audiência.

Ora, esquecem os críticos a história da TV no Brasil. Ao trazer a TV analógica para o país no início da década de 1950, Assis Chateaubriand também foi chamado de visionário, louco e muitos consideraram que o projeto estava fadado ao fracasso. Em 1950, para quem não recorda, o empresário trouxe câmeras e técnicos norte-americanos para treinar os brasileiros, num período em que ainda não existia gravação de programas e tudo era produzido ao vivo; comprou 200 equipamentos de TV, espalhou-os no centro de São Paulo e inaugurou a TV brasileira, que tinha programação pensada (e roteirizada) apenas para o dia lançamento.

De lá para cá, a TV brasileira cresceu muito, conquistou sua própria linguagem e, embora exista concentração dos meios de comunicação no país, não é possível deixar de observar que possuímos uma das melhores qualidades em programação de conteúdos do mundo. No caso da TVD, trata-se de um produto novo. É preciso fazer uma grande campanha nacional esclarecendo quais as diferenças entre a TV digital e a TV analógica e as vantagens de se adquirir um conversor com canal de retorno, que tenha um preço acessível e possa ser comprado em prestações para não pesar no orçamento familiar.

Produção de conteúdos

A escolha do modelo tecnológico trouxe em seu bojo uma outra discussão: a necessidade de desenvolver projetos de conteúdos para a TV digital que tenham como características a interatividade, a multiprogramação, a acessibilidade, a portabilidade e a convergência tecnológica. Ou seja, trata-se da possibilidade de construir e desenvolver conteúdos que possam ser usados em diferentes plataformas digitais, como a TV, o rádio e o cinema digital, os celulares, videojogos, computadores e palms, i-pods, ao mesmo tempo ou em separado.

Isso significa a possibilidade de produzir uma gama de conteúdos digitais para diferentes plataformas nunca antes pensada no país, que é um dos maiores produtores de conteúdos audiovisuais analógicos. Afinal, está terminando o tempo em que os conteúdos e diferentes gêneros eram produzidos para cada mídia em separado e apenas pelas empresas de comunicação que monopolizavam (e ainda monopolizam) o setor.

Em tempos de tecnologias digitais, os conteúdos podem produzidos por diferentes atores postados em internet, podendo ser vistos em computadores, TV digital, i-pods e celulares. Os conteúdos digitais também podem ser usados em diferentes plataformas, desde que respeitadas as linguagens de cada equipamento – e não apenas copiados, como fazem algumas empresas ao reproduzirem seus canais de TV na internet ou os jornais na internet.

Nesse sentido, a proposta do governo brasileiro de criar o Centro Nacional de Excelência em Produção de Conteúdos Digitais Interativos e Interoperáveis, coordenado pelo Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT), é inovadora e segue a decisão do encontro do E-LAC em 2008. No encontro de 26 países latino-americanos e caribenhos para definir os rumos da Sociedade da Informação até 2010, realizado em El Salvador (2008), a delegação brasileira apresentou a proposta de criação de um centro regional de produção de conteúdos digitais, assim como o estímulo à criação de centros nacionais em cada país.

Projetos não-centralizados

A proposta, aceita por unanimidade, levou em conta o papel da indústria de conteúdos e de entretenimento no cenário mundial. Os 26 países decidiram tornarem-se produtores de conteúdos, e não somente consumidores, como vinha ocorrendo até então, pois os estudos internacionais mostram que a América Latina produz apenas 7% dos conteúdos consumidos mundialmente.

Desde março, estão acontecendo reuniões interministeriais que envolvem representantes do MCT, do MEC, Ibict, Ministério da Cultura, da Saúde, Desenvolvimento Agrário, Planejamento, Indústria e Comércio, Rede Nacional de Pesquisa (RNP) e Casa Civil, entre outros. Esses representantes estão definindo os parâmetros e critérios que deverão nortear o estímulo à produção de conteúdos digitais para diferentes plataformas digitais. Isso significa estimular a produção e desenvolvimento de projetos em parceria por diferentes atores sociais, como a academia, os produtores independentes, pequenas empresas, institutos de P&D e terceiro setor.

Para desenvolver uma proposta, os interessados desenvolvem projetos de conteúdo para uma ou mais plataformas digitais que contenham itens como acessibilidade, usabilidade, portabilidade, interatividade e mobilidade. Além disso, projetos inter-regionais serão valorizados, estimulando, por exemplo, que as universidades mais desenvolvidas, colaborem com universidades menores, sem centralizar projetos em uma ou outra instituição. Quanto à temática, serão aceitos projetos de conteúdos voltados para educação, cultura, entretenimento, saúde, justiça, trabalho, comércio, meio ambiente etc. Espera-se que o Comitê Gestor do Centro Nacional de Produção de Conteúdos Digitais possa ser nomeado no começo do segundo semestre e os editais convidando para execução de projetos de conteúdos digitais em todo o país possam ser publicados antes do final de 2008.

O mais completo

A grande vantagem do uso da TV digital em países emergentes, como o Brasil, é a possibilidade de inclusão social que ela permite, já que o país possui mais de 95% de televisores analógicos e o governo federal começou a desenvolver uma política de barateamento da caixa conversora – similar às das TVs por assinatura ou a um DVD. A população poderá adquirir o equipamento em várias prestações. Trata-se de uma política similar à desenvolvida para estimular a compra de computadores, que possibilitou a venda de 10 milhões de equipamentos em 2008.

Muita gente pergunta quais outros motivos – além da inclusão digital e do preço acessível – levariam o consumidor a adquirir a caixa conversora com canal de retorno?

Vários motivos podem ser apontados.

Em primeiro lugar, as pessoas já conhecem o seu aparelho de TV analógico, de uso doméstico. Isso significa que já há uma intimidade com a máquina – e a caixa conversora é similar a um aparelho para receber TV por assinatura ou a um DVD. Assim, não haveria grandes modificações ou choque tecnológico, até porque os primeiros controles remotos têm funções bastante básicas para não confundir os consumidores, atendendo aos critérios de acessibilidade para aqueles que ainda não estão familiarizados com as tecnologias digitais.

Em segundo lugar, a TV pode ser usada de forma coletiva e compartilhada. Enquanto o computador estimula a individualidade, a TV promove a parceria, a socialização dos conhecimentos e das informações, se pensarmos do ponto de vista das pessoas que estão em casa. Um bom exemplo é o de uma pessoa que deseja fazer um curso de educação à distância (EaD): ela poderá estudar sozinha e/ou acompanhada através da TV digital ou sozinha no computador. Pela primeira vez, existe a oportunidade das pessoas de uma mesma família aprenderem coletivamente e compartilhar saberes e experiências de mundo.

Em terceiro lugar, é possível apontar a significativa melhora na imagem da TV digital – seja através do uso do sinal analógico com caixa conversora, do modelo standard ou de alta definição –, pois ele é fundamental para estudos que exijam detalhamento de imagens, profundidade ou terceira dimensão. Tais tecnologias ampliam as oportunidades de desenvolvimento de projetos de EaD voltados para a educação técnica/ profissionalizante, assim como para tele-medicina, só para citar dois casos.

A TV digital – através do uso do midlleware Ginga, incorporado à caixa conversora – permite uma grande revolução tecnológica. Essa revolução vai além do fato do Ginga ser uma tecnologia made in Brazil que vem servindo de referência para outros países, como os europeus e os EUA. Mais do que isso: permite a interoperabilidade entre os diferentes padrões; ou seja, eles podem ‘falar’ entre si, não sendo restritivos, como os sistemas DVD existentes no mundo. Além disso, o uso do canal de retorno estimula a interatividade entre o campo da produção e da recepção, mudando radicalmente a relação entre os que produzem conteúdos e aqueles que até então apenas recebiam silenciosamente esses conteúdos. Como se não bastasse, o Ginga oferece interface com internet e também interface gráfica. Em outras palavras, é o mais completo middleware entre os sistemas existentes e funciona em código aberto.

Inclusão social

Muitos se perguntam se isso vai ocorrer já no primeiro ano da TV digital brasileira. Creio que não; é preciso dar tempo ao tempo, já que a tecnologia está sendo criada, desenvolvida ‘no caminho’. E recordar Antonio Machado, quando escreveu ‘caminante no hay camino; el camino se hace al caminar’. Mais do que isso, é preciso levar em consideração que tampouco existe experiência acumulada em interatividade total em países como Inglaterra e EUA, que possuem pelo menos 10 anos de pesquisa e trabalhos em TVD.

Isso significa que não teremos interatividade na TV digital brasileira?

Sim, teremos interatividade, mas também significa que temos de dar tempo ao tempo. E ao invés de apenas criticar os projetos do governo, precisamos encontrar posições proativas que ajudem a construir a TV digital brasileira, entre elas:

1. Apoiar projetos nacionais como o Ginga;

2. Estimular o desenvolvimento de uma nova geração de produtores de conteúdos, agora voltados para o mercado digital em suas diferentes plataformas, através do Centro Nacional de Excelência em Produção de Conteúdos Digitais Interativos e Interoperáveis;

3. Repensar os programas universitários de graduação e de pós-graduação estimulando a transdisciplinaridade e o trabalho conjunto entre professores e pesquisadores de diferentes áreas para pensar as plataformas digitais e a convergência tecnológica;

4. Desenvolver uma grande campanha nacional sobre os benefícios da TVD e da aquisição da caixa conversora, explicando aos consumidores a diferença entre caixa conversora simplificada, que não permite interatividade mas melhora a imagem, e a caixa conversora com canal de retorno, que permite multiprogramação e vários níveis de interatividade, como a local (só é possível baixar programas) e total (aquela que permite interagir online com outros atores sociais e com a produção dos programas realizados ao vivo);

5. Enfim, tratar a TV digital e as novas plataformas digitais como política pública de inclusão social, desenvolvimento tecnológico e futuros conteúdos de exportação.

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Doutora em Comunicação pela Universidade Autônoma de Barcelona, professora do Mestrado em TVD na UNESP, prêmio Luiz Beltrão/Intercom – 2008 na categoria Liderança Emergente, autora de Mídias Digitais, Convergência Tecnológica e Inclusão Social(Paulinas, 2005), Por que os Reality Shows Conquistam as Audiências?(Paulus, 2006) e Comunicação Digital, Educação, Tecnologia e Novos Comportamentos (Paulinas, 2008, no prelo)