Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Cursinho sobre a América Latina

Assim começa uma das poucas matérias interessantes e não superficiais que li nos últimos meses na grande mídia jornalística brasileira:

‘Desde quando os raviólis têm recheio de salmão?’, pergunta, a um assustado garçom, o roqueiro Fito Paez, 47, enquanto examina o cardápio de um restaurante da capital uruguaia. ‘Na minha época, eles eram ou de ricota ou de verdura, hoje os menus estão cheios de invencionices.’

Este tipo de ‘inquietude’ hoje pode parecer uma coisa muito blasé, ou surrealista, para os habitantes terrenos da atualidade. Mas vinda de um dos maiores poetas da atualidade me arde como uma provocação, algo para instigar o pensamento estagnado e acomodado de hoje.

Após ser servido com um prato do tradicional espaguete à bolonhesa, Paez falou à Folha sobre tradições culturais (além das gastronômicas), música pop latina e política. Então, um pouco mais tranquilo. Ele fez show na sexta (21/09) no festival Sonidos, que ocorreu em São Paulo.

Brasil ignora cultura de países vizinhos

Fito, como sempre um cavalheiro, falou sobre o isolamento do Brasil artisticamente, mas, politicamente correto, preferiu não tocar na ferida. ‘Não só a cozinha contemporânea desanima Fito. Também o pop minimalista de artistas da nova geração. Para ele, nomes como Jorge Drexler e Kevin Johansen têm talento, mas são muito amáveis. Falta combatividade’ – segue Sylvia Colombo, enviada da Folha a Montevidéu, em sua matéria.

O cantautor argentino faz o viés politicamente correto, mesmo sendo um fervoroso crítico ao atual rumo que toma a política de seu país. Principalmente quanto ao mandatário da capital portenha, Mauricio Macri, oposicionista à presidenta Cristina Kirchner. Fito prefere não apontar ao país vizinho e prefere manter um discurso generalista para não causar revoltas em sua estada que se dará no Brasil.

Vejo eu que o isolamento mútuo entre os países da América Latina se deva muito mais à americanização do continente, que consome por status qualquer porcaria proveniente das terras do Tio Sam e recusa tudo que não seja americano. Como se um produto que não venha do Império do Norte não tenha a possibilidade de ser algo bom. Essa cultura ignóbil que principalmente teve força nos anos noventa por aqui, quando se ligava em uma rádio e não se escutava nada mais que o inglês. Salve as Ams, que tocavam o que na época se rotulava brega e hoje é repertório de DJs em festas cult e trash. Por nosso continente, um adolescente – e não apenas ele – sabe mais do país de Obama que sobre os países limítrofes. O Brasil é absurdamente ignorante quanto à cultura de seus países vizinhos.

Falta de cultura e imperialismo

Morando em Buenos Aires, descobri que a recíproca é verdadeira. Por lá, o que se conhece de música brasileira é basicamente o que passou pelos Estados Unidos… Coisas antigas, bossa nova, algo de anos 80 e nada mais. Artistas que gravaram com argentinos são lembrados pela geração dos trinta e é só. É estranho ver que se esteja normatizando tal discurso, construído pelo cinema americano de que todos no universo falam inglês yankee, desde cachorros a extraterrestres fazendo com que se engula qualquer coisa sem qualidade apenas devido à sua origem, e não por um verdadeiro valor artístico.

Existem fenômenos isolados, mas no grosso a arte latino-americana, para chegar a seus vizinhos de raiz linguística única, necessita de aval dos gringos para ser reconhecida. Jorge Drexler é um bom exemplo. Só passou a ser valorizado no Brasil depois que concorreu ao Oscar. O filme Tropa de Elite, idem. O cinema argentino e uruguaio são fabulosos, mas não chegam a nossas salas e locadoras. E no país vizinho, em quase dois anos, apenas vi três títulos brasileiros: Cidade de Deus e Cidade dos Homens, além do filme de José Padilha.

Não panfletista, fazendo a lista do que poderia ou deveria ser conhecido da cultura hispânica-latino-americana, creio que basta que se escutem dois trabalhos, recheados de duetos importantíssimos e fabulosos, para se acessar o que parece inacessível. É como se fosse um cursinho pré-vestibular intensivo. Ambos os trabalhos contêm as participações dos mais ilustres desconhecidos, para nós, brasileiros, da música latina (em espanhol). O álbum duplo, Cantora 1 e 2 (2009), última obra-prima de Mercedes Sosa. Aonde também participou Caetano Veloso e temos a maior estrela argentina da história cantando uma faixa em português. E o DVD de 2008, No sé si es Baires o Madrid, gravado na capital espanhola por Fito Paéz. Ambos disponíveis na íntegra noYouTube ou podem ser baixados em qualquer programa de arquivos.

Tudo isso que vivemos nada mais é que uma questão de baixa auto-estima latina. Há pouco, Ivete Sangalo teve de fazer um show em Nova York para se ‘lançar internacionalmente’, mas nunca realizou grandes shows em muitos dos países vizinhos. Ao mesmo tempo em que isso ocorre, Toquinho e Maria Creuza recém-realizaram um grande show no Luna Park, grande casa de Buenos Aires, com seus sucessos da década de 70. Meus caros, pensemos, qual artista com menos de 40 anos conhecemos no Brasil que não seja sucesso nos EUA? Bem… Isso se chama falta de cultura e imperialismo!

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Ator, diretor teatral, cantor, escritor e jornalista, Florianópolis, SC