Dois conceitos relacionados ao trabalho do educador brasileiro Paulo Freire (1921-1997) são centrais para o estudo e a formulação de políticas públicas no campo das comunicações: “cultura do silêncio” e “direito à comunicação”. O primeiro foi por ele introduzido. O segundo articula-se em torno do paradigma da comunicação dialógica que tem nele um de seus principais teóricos.
O que se pretende neste artigo é oferecer uma breve “arqueologia” desses conceitos e argumentar que cultura do silêncio, dentre outras aplicações, constituirá sempre uma referência de critério para a avaliação de propostas e de políticas públicas no campo das comunicações. Da mesma forma, queremos mostrar que a consolidação e a positivação do direito à comunicação como um direito humano fundamental é para onde convergem hoje as esperanças de uma sociedade na qual todos possam exercer sua liberdade de expressão e participar democraticamente do debate público.
Uma advertência preliminar deve ser feita. Vivemos um momento de revolução tecnológica com repercussões profundas no campo das comunicações: a avassaladora expansão das novas TICs [tecnologias de informação e comunicação] – interativas e fragmentadas – e o enfraquecimento relativo da mídia tradicional – unidirecional e centralizada. Apesar das incontáveis possibilidades potenciais e concretas que as novas TICs oferecem para que novas vozes se integrem ao debate público, nunca será demais evocar a famosa passagem de Antonio Gramsci (1971). Embora, por óbvio, as circunstâncias fossem outras e seja necessária uma pequena adaptação no texto, penso que se aplica às atuais circunstâncias históricas a ideia de que “o velho está morrendo e o novo apenas acaba de nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece” (p. 275-276) [a frase original correta é: “A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece”]. Gramsci nos relembra que um dos riscos, enquanto a transição não se completa, é esquecer que o velho sobrevive, resiste e permanece ativo na defesa de seus antigos privilégios.
Essa é uma verdade que tem dimensões matizadas e diferentes. Perdê-la de vista significaria não só ignorar lições do passado, como postergar indefinidamente possíveis consequências democratizantes das novas TICs.
(A) CULTURA DO SILÊNCIO
A History of Brazil de Southey
O poeta, ensaísta e historiador Robert Southey (1774-1843), nascido em Bristol, na Inglaterra, nunca esteve no Brasil, mas valeu-se de preciosa biblioteca organizada por seu tio, pastor anglicano da comunidade inglesa em Lisboa, e escreveu a primeira história publicada do nosso país que abrange o período colonial do “descobrimento” até a transferência da corte portuguesa, em 1808. A História do Brasil, originalmente publicada em inglês, em três volumes (1810, 1817 e 1819), teve sua primeira edição em português em 1862 e continua sendo um importante documento sobre os primeiros três séculos de construção da sociedade brasileira. [Uma nova edição da História do Brasilde Southey, em três volumes, foi publicada pelas Edições Senado Federal em 2010.]
Em boa parte do volume I de sua História (2010), Southey trata do período da invasão holandesa no nordeste brasileiro e da longa e sofrida guerra para expulsão dos comandados do conde Mauricio de Nassau. Ao final do extenso capítulo XVII, relata a chegada à Bahia do marquês de Monte Alvão, indicado vice-rei em 1640, ano em que a dinastia dos Bragança retoma da Espanha o controle de Portugal à qual estava unido desde 1580.
O sermão do Padre Vieira
Para descrever a situação em que se encontrava a colônia nesse período, Southey recorre ao pregador jesuíta Padre Antonio Vieira, que saúda o vice-rei com um de seus famosos sermões, o da “Visitação de Nossa Senhora”, proferido no dia 2 de julho de 1640 [existem dois sermões de Vieira identificados como da “Visitação de Nossa Senhora”; citamos aqui o referido por Southey, Berlinck e Freire pregado em 1640, o outro é de 1638].
Registre-se que o púlpito era talvez a única tribuna livre existente naquele período. E Vieira aproveita-se sabiamente da festa do dia no calendário litúrgico da igreja católica para “pintar” ao vice-rei um quadro sombrio da Terra de Santa Cruz.
O relato da “Visitação de Nossa Senhora”, logo após receber a “anunciação” de que seria mãe de Jesus, à sua prima Isabel, também grávida de seis meses e que dará à luz João Batista, está no capítulo 1 do Evangelho de Lucas. Vieira [1959] cita diretamente da Vulgata Latina, parte do versículo 44 – “Ut facta est salutationis tuae in auribus meis, exultavit in gaudio infans” [a íntegra do versículo 44, do capítulo 1, de Lucas, é: “Ecce enim ut facta est vox salutationis tuæ in auribus meis exultavit in gaudio infans in utero meo”, isto é, “Logo que a tua saudação ressoou nos meus ouvidos, o menino pulou de alegria no meu ventre”]; e prossegue:
Comecemos por esta última palavra. Bem sabem os que sabem a língua latina, que esta palavra, infans, infante [do latim infans, infantis: que não fala, incapaz de falar, infantil; de fari, falar], quer dizer o que não fala. Neste estado estava o menino Batista, quando a Senhora o visitou, e neste esteve o Brasil muitos anos, que foi, a meu ver, a maior ocasião de seus males. […] O pior acidente que teve o Brasil em sua enfermidade foi o tolher-se-lhe a fala: muitas vezes se quis queixar justamente, muitas vezes quis pedir o remédio de seus males, mas sempre lhe afogou as palavras na garganta, ou o respeito, ou a violência; e se alguma vez chegou algum gemido aos ouvidos de quem o devera remediar, chegaram também as vozes do poder, e venceram os clamores da razão [p. 330].
Para Vieira, portanto, o maior dos males do enfermo Brasil na primeira metade do século 17 era ter sido mantido no mesmo estado dos infans, infantes, isto é, sem fala, sem voz: “O pior acidente que teve o Brasil em sua enfermidade foi o tolher-se-lhe a fala”. Além disso, afirma Vieira, nas muitas vezes em que o Brasil tentara manifestar-se através dos “clamores da razão”, havia sido vencido pela violência e pelo poder. [Apenas quatro anos após o sermão de Vieira, 1644, aparece na Inglaterra o clássico Aeropagitica,de John Milton. Chamo a atenção para o abismo existente entre as condições históricas brasileiras e inglesas em relação às liberdades de expressão e de imprimir, nos séculos 17 e seguintes.].
Berlinck e os “fatores adversos”
Um século e meio depois de Southey, em livro pouco conhecido, Berlinck (1948) descreve o que considera “fatores adversos” na formação brasileira e recorre igualmente ao sermão da “Visitação de Nossa Senhora” (através da História de Southey). [Não se encontra referência a este autor e/ou ao seu livro na literatura acadêmica brasileira, salvo naqueles poucos que estudam as origens do pensamento de Paulo Freire. Aparentemente trata-se do engenheiro paulista Eudoro Lincoln Berlinck que publicou livros técnicos na sua área de atuação profissional.] Para ele, Vieira “achava, apesar de estar no século XVII, que estas terras já deveriam conter representantes do povo para expressar as aspirações dos habitantes, e influir na marcha dos negócios públicos. Vontade de falar, de se queixar, havia, mas o regime de opressão que já se iniciara, impedia que a opinião pública se fizesse ouvir” (p. 89).
Para Berlinck, a “opressão política” é um “mal endêmico” no Brasil. Afirma ele:
A opressão política começou logo depois do governo de Mem de Sá [1558-1572]; atravessou o período da dominação espanhola e firmou-se definitivamente no reinado bragantino. A escola que se formou e perdurou por séculos, prosseguiu no Brasil Império, e tem refulgido na República em inúmeros atos de governos constitucionais ou não. Não há tradição colonial que tenha resistido tanto à ação corrosiva do tempo e ao progresso da humanidade quanto esta (p. 86).
Além disso, Berlinck compartilha de posição que viria a ser consensual entre os principais intérpretes de nossa história, isto é, a de que o Brasil era “um país sem povo”. Nesse sentido, escreve: “Não se formara, como só depois da abolição da escravatura se formaria, uma classe que se poderia chamar de ‘povo’. Eram, ou senhores ou escravos” (p. 92).
A consolidação do conceito em Freire
Na tese “Educação e Atualidade Brasileira”, que escreveu para o concurso da cadeira de História e Filosofia da Educação na Escola de Belas Artes de Pernambuco, em 1959, Freire antecipa muitas das observações que vão aparecer revistas e atualizadas, oito anos depois, em Educação como Prática da Liberdade.
Freire parte de uma reflexão sobre a “inexperiência democrática” brasileira explicada pela interpretação – presente em Berlinck – de que o Brasil era “um país sem povo”. Ele se referencia no trabalho de isebianos históricos como Guerreiro Ramos, responsável pelo departamento de Sociologia do ISEB [O Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), vinculado ao Ministério de Educação e Cultura, foi criado durante o governo de Café Filho, em 1955, com autonomia administrativa e liberdade de pesquisa, de opinião e de cátedra. A maioria dos seus membros era comprometida com uma ideologia nacionalista de desenvolvimento, entre eles Hélio Jaguaribe, Roland Corbisier, Guerreiro Ramos, Nelson Werneck Sodré, Antonio Cândido, Ignácio Rangel e Álvaro Vieira Pinto. Foi extinto pelo regime militar, em abril de 1964, e vários de seus membros foram exilados do Brasil], que em seu Condições Sociais do Poder Nacional (1957), afirma:
O que sociologicamente é relevante é assinalar que, durante o período de dominação dos fazendeiros, o Brasil foi um país sem povo. Mesmo a observadores desarmados de categorias sociológicas foi fácil fazer essa observação. Já na fase colonial, o padre Antonio Vieira dizia: ‘cada família é uma república’. E Simão de Vasconcelos confirmava: ‘nenhum homem nesta terra é repúblico’. O francês Louis Couty escrevia em 1882 que ‘o Brasil não tem povo’. Observação que Silvio Romero fez sua em 1907. Outro estudioso seguro, Alberto Torres, declarava, em 1914, que no Brasil ‘a sociedade não chegou a constituir-se’. Não se pode duvidar que são perfeitamente exatas essas verificações (p. 14-15).
No contexto deste “país sem povo”, Freire vai também recorrer, através de várias citações do livro de Berlinck, ao sermão da “Visitação de Nossa Senhora” de Vieira [nota 1, p. 82], e, pela primeira vez, ainda em 1959, fala no “mutismo brasileiro” [Álvaro Vieira Pinto (1956), isebiano de grande influência em Freire e por ele fartamente citado, também usa a palavra “mutismo” quando se refere ao “total mutismo das grandes massas ignorantes e apáticas” (p.11), mas não remete ao sentido original derivado de Vieira] que é definido em nota específica:
Entendemos por mutismo brasileiro a posição meramente expectante do nosso homem diante do processo histórico nacional. Posição expectante que não se alterava em essência e só acidentalmente, com movimentos de turbulência, a constante, mais uma vez era o mutismo, o alheamento à vida pública. (…) [p.83-84].
Alguns anos mais tarde, no Educação como Prática da Liberdade (1967), antes mesmo de retomar o tema da “inexperiência democrática”, Freire registra a “emergência” do povo na história do Brasil e afirma:
Se na imersão [o povo] era puramente espectador do processo [histórico], na emersão descruza os braços e renuncia à expectação e exige a ingerência. Já não se satisfaz em assistir. Quer participar. A sua participação (…) ameaça as elites detentoras de privilégios. Agrupam-se então para defendê-los (…). E, em nome da liberdade ‘ameaçada’, repelem a participação do povo. Defendem uma democracia sui generis em que o povo é um enfermo a quem se aplicam remédios. E sua enfermidade está precisamente em ter voz e participação. Toda vez que tente expressar-se livremente e pretenda participar é sinal de que continua enfermo, necessitando, assim, de mais ‘remédio’. A saúde, para esta estranha democracia, está no silêncio do povo, na sua quietude (p. 55).
Nesta passagem de Freire, o povo que estava imerso (ausente) da história, emerge. E a influência do jesuíta seiscentista se manifesta claramente, tanto na ideia de “enfermidade” quanto na ausência de voz, no silêncio do povo, como características “estranhas” de democracia.
O segundo capítulo de Educação como Prática da Liberdade é inteiramente dedicado à discussão da “inexperiência democrática”. Freire enfatiza a ausência de uma vida comunitária na experiência colonial brasileira. Apoiando-se em Oliveira Vianna [1949], compara a situação do Brasil com a das comunidades agrárias europeias (espanholas), nas quais, por meio da participação no poder local, o povo adquiriu uma vasta experiência política. Ele sustenta que “o Brasil nunca experimentou aquele senso de comunidade, de participação na solução de problemas comuns […] senso que se ‘instala’ na consciência do povo e se transforma em sabedoria democrática” [p. 70-71].
Após analisar as consequências da herança colonial e da ausência de autogoverno no Brasil, Freire conclui seu argumento fazendo um conjunto de perguntas sobre os “fatores adversos” de nossa colonização. Pergunta ele: “Onde buscarmos as condições de que tivesse emergido uma consciência popular democrática, permeável e crítica, sobre a qual se tivesse podido fundar autenticamente o mecanismo do estado democrático […]? Na ausência de circunstâncias para o diálogo em que surgimos, em que crescemos?” (p. 79-80, passim).
Ao particularizar “a ausência de circunstâncias para o diálogo em que surgimos, em que crescemos”, Freire retoma o tema do mutismo brasileiro. Retorna, então, a passagem do sermão da “Visitação de Nossa Senhora” de Vieira – já citado na tese de 1959 – e prossegue afirmando que o mutismo é característico da sociedade a que se negam a comunicação e o diálogo e, em seu lugar, se lhes oferecem “comunicados”. Insiste que essas sociedades se tornam preponderantemente “mudas” e chama a atenção para o fato de que o mutismo “não significa ausência de resposta, mas sim uma resposta que carece de criticidade.”
Logo depois, em 1968, Freire utiliza pela primeira vez a expressão “cultura do silêncio” referindo-se ao contexto global da América Latina. Seu trabalho junto ao Instituto de Capacitación y Investigación de la Reforma Agrária (ICIRA) chileno, na década de 1960, colocou-o em estreito contato com os “campesinos”, em cujo ambiente cultural encontrou fortes traços de semelhanças com aquele dos camponeses do Nordeste brasileiro. Àquela época, portanto, ele vivenciou diretamente as consequências tanto da colonização portuguesa como da espanhola na América Latina. Assim, no Informe de Actividades do ICIRA para 1968, Freire alarga os horizontes conceituais do mutismo para toda a América Latina e escreve:
Estamos convencidos – hoje, mais do que nunca – que aquilo que chamamos de cultura do silêncio, introjetada como “inconsciente coletivo” pelos camponeses, não pode ser transformada mecânica ou automaticamente pela mudança infra-estrutural operada através do processo de reforma agrária. Esta cultura do silêncio, tão característica de nosso passado colonial, nutre-se e deita suas raízes no solo favorável da estrutura de propriedade da terra na América Latina. Histórica e culturalmente, esta cultura do silêncio assumiu a forma de uma “consciência camponesa”, ou na definição de Hegel, uma “consciência servil”.
No contexto latino americano é possível melhor compreender o significado mais profundo da cultura do silêncio. Todavia, Freire insiste que, embora sua análise esteja voltada primordialmente para a realidade latino-americana, “isto não invalida a possibilidade de sua aplicação a outras áreas do Terceiro Mundo [Para Freire (1976) “o conceito de ‘Terceiro Mundo’ é ideológico e político, não geográfico. O chamado ‘Primeiro Mundo’ possui dentro de si e contra si o seu próprio ‘Terceiro Mundo’. E o ‘Terceiro Mundo’ tem o seu ‘Primeiro Mundo’, representado pela ideologia dominante e o poder das classes dirigentes” (p. 105-127)], ou àquelas áreas das metrópoles que se identificam com o Terceiro Mundo enquanto ‘áreas de silêncio’.” Dessa forma, ele argumenta no ensaio “Ação Cultural para a Liberdade” (original 1970; 1976):
Só é possível compreender a cultura do silêncio se a tomarmos como uma totalidade que é, ela própria, parte de um todo maior. Neste todo maior devemos reconhecer também a cultura ou culturas que determinam a voz da cultura do silêncio. […] A compreensão da cultura do silêncio pressupõe uma análise da dependência enquanto fenômeno relacional que acarreta diversas formas de ser, de pensar, de expressão, tanto da cultura do silêncio como da cultura que “tem voz” […]. A sociedade dependente é por definição uma sociedade silenciosa. Sua voz não é autêntica, mas apenas um eco da voz da metrópole – em todos os aspectos, a metrópole fala, a sociedade dependente ouve. O silêncio da sociedade-objeto face à sociedade metropolitana se reproduz nas relações desenvolvidas no interior da primeira. Suas elites, silenciosas frente à metrópole, silenciam, por sua vez, o seu próprio povo. Apenas, quando o povo da sociedade dependente rompe as amarras da cultura do silêncio e conquista seu direito de falar – quer dizer, apenas quando mudanças estruturais radicais transformam a sociedade dependente – é que esta sociedade como um todo pode deixar de ser silenciosa face à sociedade metropolitana (p. 70-71).
Resumidamente podemos afirmar que cultura do silêncio é um conceito freireano que tem sua origem numa observação de Vieira no século 17, se constrói a partir da análise isebiana da herança colonial brasileira e se consolida no quadro teórico da “teoria da dependência”, em voga no início da segunda metade do século passado. Referindo-se inicialmente à sociedade brasileira, foi posteriormente ampliado para abranger não somente outros países da América Latina, mas todas as sociedades do Terceiro Mundo e os oprimidos em geral. Nesse sentido, Freire sustenta que os séculos de colonização portuguesa e espanhola na América Latina resultaram numa estrutura de dominação à qual corresponde uma totalidade ou um conjunto de representações e comportamentos. Esse conjunto ou “formas de ser, pensar e expressar” é tanto um reflexo como uma consequência da estrutura de dominação. A cultura do silêncio, por fim, caracteriza a sociedade a que se nega a comunicação e o diálogo e, em seu lugar, se lhe oferece “comunicados”, vale dizer, é o ambiente do tolhimento da voz e da ausência de comunicação, da incomunicabilidade.
Cultura do silêncio no século 21
Como já registrado na abertura deste artigo, vivemos um momento de revolução nas comunicações. O ambiente das TICs – computadores pessoais, notebooks, tablets, celulares, redes sociais etc. –, por óbvio, oferece possibilidades crescentes para a superação da cultura do silêncio. É, portanto necessário que se faça a diferença entre as velhas [mass media] e as novas formas [TICs] de comunicação mediadas tecnologicamente. [Manuel Castells, em seu novo livro (2009, 2011), apesar de centrado no polêmico conceito de “sociedade em rede”, discute de forma instigante as mudanças nas relações de poder nas sociedades globalizadas, decorrentes da avassaladora presença das TICs.]
Certamente a cultura do silêncio freireana, além de caracterizar vastas “áreas de silêncio” que ainda sobrevivem na sociedade brasileira, pode ser atualizada em relação à velha mídia, se comparada, por exemplo, ao conceito de “efeito silenciador do discurso”, introduzido pelo jurista norte americano Owen Fiss quando argumenta que, ao contrário do que apregoam os liberais clássicos, o Estado não é um inimigo natural da liberdade (2005, esp. capítulo 1).
O Estado pode ser uma fonte de liberdade, por exemplo, quando promove a robustez do debate público em circunstâncias nas quais poderes fora do Estado estão inibindo o discurso. Ele pode ter que alocar recursos públicos – distribuir megafones – para aqueles cujas vozes não seriam escutadas na praça pública de outra maneira. Ele pode até mesmo ter que silenciar as vozes de alguns para ouvir as vozes dos outros. Algumas vezes não há outra forma (Fiss, 2005, p. 30).
Fiss usa como exemplo os discursos de incitação ao ódio, à pornografia e os gastos ilimitados nas campanhas eleitorais. As vítimas do ódio têm sua autoestima destroçada; as mulheres se transformam em objetos sexuais e os “menos prósperos” ficam em desvantagem na arena política. Em todos esses casos, “o efeito silenciador vem do próprio discurso”, isto é, “a agência que ameaça o discurso não é Estado”. Cabe, portanto, ao Estado promover e garantir o debate aberto e integral e assegurar “que o público ouça a todos que deveria”, ou ainda, garanta a democracia exigindo “que o discurso dos poderosos não soterre ou comprometa o discurso dos menos poderosos”.
Especificamente no caso da liberdade de expressão, existem situações em que o “remédio” liberal clássico de mais discurso, em oposição à regulação do Estado, simplesmente não funciona. Aqueles que supostamente poderiam responder ao discurso dominante não têm acesso às formas de fazê-lo (p. 47-48). O exemplo emblemático dessa última situação é o acesso ao debate público nas sociedades onde ele (ainda) é controlado pelos grandes grupos da mídia tradicional.
Como assegurar um debate público democrático no qual, como diz Fiss, todas as vozes sejam ouvidas. Como superar a cultura do silêncio?
No seu trabalho Freire contrapôs explicitamente a cultura do silêncio ao “conceito antropológico de cultura” e encontrou na práxis da ação cultural para liberdade a síntese dialética de superação da condição de opressão e, portanto, da ausência de voz. Nas circunstâncias históricas desse início de século 21, queremos argumentar que a positivação do direito à comunicação como direito humano fundamental, é o caminho para a plena superação da cultura do silêncio. E novamente as formulações conceituais e a prática de Freire constituem a fonte básica de referência.
(B) DIREITO À COMUNICAÇÃO
[a] Fundamentos teóricos
T. H. Marshall, em seu clássico Cidadania e classe social (original 1949, publicado no Brasil em 1967), divide a cidadania em três dimensões, cada uma fundada em um princípio e numa base institucional distintos que permanecem aplicáveis às circunstâncias do mundo contemporâneo. O direito à comunicação perpassa essas três dimensões, constituindo-se, ao mesmo tempo, em direito civil – liberdade individual de expressão; em direito político – através do direito à informação; e em direito social – através do direito a uma política pública garantidora do acesso do cidadão às diferentes formas de comunicação mediadas tecnologicamente.
Na verdade, a necessidade do desenvolvimento e da positivação de um direito à comunicação foi identificada há mais de 40 anos pelo francês Jean D’Arcy, quando diretor de serviços audiovisuais e de rádio do Departamento de Informações Públicas das Nações Unidas, em 1969. Naquela época, ele afirmava:
Virá o tempo em que a Declaração Universal dos Direitos Humanos terá de abarcar um direito mais amplo que o direito humano à informação, estabelecido pela primeira vez vinte e um anos atrás no Artigo 19. Trata-se do direito do homem de se comunicar [em Fisher, 1984, p. 26].
Onze anos depois, o famoso Relatório MacBride, publicado pela Unesco (original 1980; 1983, p. 287-291), reconhecia pioneiramente o direito à comunicação. Diz o relatório:
Hoje em dia se considera que a comunicação é um aspecto dos direitos humanos. Mas esse direito é cada vez mais concebido como o direito de comunicar, passando-se por cima do direito de receber comunicação ou de ser informado. Acredita-se que a comunicação seja um processo bidirecional, cujos participantes – individuais ou coletivos – mantêm um diálogo democrático e equilibrado. Essa idéia de diálogo, contraposta à de monólogo, é a própria base de muitas das idéias atuais que levam ao reconhecimento de novos direitos humanos. O direito à comunicação constitui um prolongamento lógico do progresso constante em direção à liberdade e à democracia.
Tanto a proposta de D’Arcy como o Relatório MacBride, na verdade, assumiam e consagravam a perspectiva “dialógica” da comunicação que já havia sido elaborada por Freire, do ponto de vista conceitual, no seu ensaio “Extensão ou comunicação?” [1969].
Freire se diferencia da tradição dialógica dominante ao recorrer à raiz semântica da palavra comunicação e nela incluir a dimensão política da igualdade, da ausência de dominação. A comunicação implica um diálogo entre sujeitos mediados pelo objeto de conhecimento que, por sua vez, decorre da experiência e do trabalho cotidiano. Ao restringir a comunicação a uma relação entre sujeitos, necessariamente iguais, toda “relação de poder” fica excluída. A comunicação passa a ser, portanto, por definição, dialógica, vale dizer, de “mão dupla”, contemplando, ao mesmo tempo, o direito de informar e ser informado e o direito de acesso aos meios tecnológicos necessários à plena liberdade de expressão. O próprio conhecimento gerado pelo diálogo comunicativo só será verdadeiro e autêntico quando comprometido com a justiça e a transformação social.
Registre-se que, até recentemente, o modelo da comunicação dialógica parecia inadequado para qualquer tipo de aplicação no contexto da mídia tradicional, unidirecional e centralizada. Freire teorizou a comunicação interativa antes da revolução digital, vale dizer, antes da internet e das redes sociais. Hoje as TICs reabrem a possibilidade da interação permanente e online no próprio ato da comunicação. O modelo normativo construído por Freire ganha atualidade e passa a servir de ideal para a realização plena da comunicação humana em todos os seus níveis.
Pode-se afirmar ainda que Freire se filia à corrente do humanismo cívico do neorrepublicanismo. A concepção implícita de liberdade na sua definição dialógica de comunicação equaciona autogoverno com participação política, contrariamente à liberdade negativa do liberalismo clássico. Para Freire, o eixo principal da vida pública está na participação ativa e no direito à voz. A liberdade não antecede à política, mas se constrói a partir dela. Essa é a base do direito à comunicação.
[b] A luta política em torno do direito à comunicação
Desde a Conferência de Viena de 1993, com a adoção pela Organização das Nações Unidas dos postulados da universalidade, indivisibilidade e interdependência, o conjunto dos direitos humanos deveria ser tratado como uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada. Como era de se prever, todavia, ao longo das últimas décadas, a positivação do direito à comunicação tem enfrentado forte resistência de interesses poderosos, organizados e atuantes em nível mundial.
A partir do final da década de 1960, travou-se em organismos multilaterais, sobretudo na Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), uma longa disputa em torno do direito à comunicação e dos fluxos internacionais de informação. Sua expressão mais conhecida é a proposta de uma Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação (Nomic).
O debate sobre “a comunicação em sentido único”, que caracterizava – e ainda caracteriza – as relações Norte-Sul, teve como principal referência a criação, em 1977, de uma comissão internacional composta por 16 membros (inclusive dois latino-americanos, Gabriel García Márquez e Juan Somavía), que divulgou suas conclusões em 1980, no conhecido Relatório MacBride, já mencionado. Este relatório foi o primeiro documento oficial de um organismo multilateral que reconhecia a existência de um grave desequilíbrio no fluxo mundial de informação, apresentava possíveis estratégias para reverter a situação e reconhecia o direito à comunicação. Em consequência, uma série de conferências regionais sobre políticas culturais e políticas nacionais de comunicação, sob o patrocínio da Unesco, foi realizada em várias partes do mundo, inclusive na América Latina.
O Relatório MacBride e a Unesco enfrentaram fortíssima oposição dos países hegemônicos e dos conglomerados globais de mídia. No auge da onda neoliberal, em clima de “Guerra Fria” e sob a liderança de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, foi lançada uma ofensiva mundial a favor do “livre fluxo da informação”, que, ao lado da chamada “liberdade da imprensa”, constitui a eterna bandeira excludente utilizada pelos grupos dominantes de mídia.
A batalha foi “vencida” quando tanto os Estados Unidos (1984) como a Inglaterra (1985), alegando a politização do debate, desligaram-se da Unesco (a Inglaterra voltou a fazer parte da Unesco em 1997 e os EUA, em 2003). A partir daí, o apoio da própria Unesco à Nomic foi minguando progressivamente e a discussão institucionalizada do desequilíbrio no fluxo de informações Norte-Sul foi sendo oficialmente deslocada para o âmbito do GATT (Tratado Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio), mais tarde transformado em OMC (Organização Mundial do Comércio).
Apesar disso, o debate iniciado na Unesco foi uma das razões que levaram à realização, em duas etapas, da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (CMSI), realizada em Genebra (2003) e em Túnis (2005). Apesar da CMSI, aparentemente, não ter resultado em compromissos concretos dos Estados participantes, a sociedade civil organizada se fez presente e manteve acesa a chama da luta pelo reconhecimento e implantação do direito à comunicação.
Esse debate foi também um dos fatores que levou ao reconhecimento da natureza particular de bens e serviços culturais – especialmente o cinema e o audiovisual.
Como afirma Mattelart (2009), “não há possibilidade de um direito à comunicação sem políticas públicas de comunicação e de cultura”, isto é, “não pode haver diversidade cultural sem uma verdadeira diversidade midiática. Como não pode haver políticas culturais sem políticas de Comunicação” (p. 38, 40, passim).
Dessa forma, o reconhecimento da natureza particular de bens e serviços culturais na disputa entre os EUA e a França – ganha pelos gauleses – e iniciada na Rodada do Uruguai do GATT, em 1994, quando se adotou o conceito de “exceção cultural”, representa um avanço no sentido do direito à comunicação. O mesmo princípio foi incluído, por exigência do Canadá, no Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), também em 1994.
O tema foi levado de volta à Unesco e lá, depois de mais de dez anos, surgiu a Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, adotada em 2005 e subscrita pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo nº 485/2006. A convenção substituiu o conceito de “exceção cultural” pelo de “diversidade cultural”.
Reconhecer que bens e serviços culturais – especialmente o cinema e o audiovisual – possuem uma “dupla” natureza, é o que fundamenta a existência de políticas públicas culturais de proteção e estímulo às culturas locais, regionais e nacionais. Isso pode significar a existência de cotas de difusão para cinema, televisão e rádio, além de políticas de subsídio financeiro à produção e distribuição de produtos culturais nacionais, como ocorre em vários países inclusive timidamente na TV paga brasileira a partir da Lei nº 12.485/2011.
(C) OBSERVAÇÕES FINAIS
Repito o que foi dito na abertura deste artigo: “Cultura do silêncio” e “direito à comunicação” são dois conceitos centrais para o estudo e a formulação de políticas públicas no campo das comunicações. No Brasil, infelizmente, como observou Eduardo Meditsch (2008), “as idéias de Freire, quando levadas em conta [nos estudos de Comunicação], foram confinadas ao ‘balé de conceitos’ da comunicologia e ‘domesticadas’ pela lógica acadêmica que seu autor sempre condenou”. Exatamente por isso, sua contribuição tem sido praticamente ignorada pelos estudos de comunicação e lembrada apenas retoricamente por atores em posição de interferir na formulação das políticas públicas do setor.
O “tolher-se-lhe a fala”, a ausência de voz e participação, é uma característica da sociedade brasileira identificada pelo padre Antonio Vieira desde a primeira metade do século 17. As TICs, como registrado, oferecem uma oportunidade histórica de superação da cultura do silêncio. Por isso a chamada “mídia cidadã” é pauta obrigatória para as políticas públicas do setor: rádio e televisão comunitárias, sistema público de radiodifusão, universalização da banda larga de qualidade, programas de inclusão digital etc. De qualquer maneira, insisto, o critério fundamental que deve orientar nossa avaliação de políticas e de propostas de políticas para o setor de comunicações será sempre a plena superação da cultura do silêncio através da garantia de que mais vozes tenham acesso e participem do debate público.
Em países como o Brasil, a forma institucional em que se manifesta hoje a disputa pelo direito à comunicação, abarcando as liberdades de buscar, receber e dar informação, é a construção de um marco regulatório que garanta a crescente participação democrática e a ampliação da diversidade e da pluralidade de ideias e opiniões presentes na comunicação tecnologicamente mediada.
Referências
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[Venício A. de Lima é professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Regulação das Comunicações – História, poder e direitos, Editora Paulus, 2011]