Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Degolar ou decapitar?

Havia tanto a se dizer sobre a palhaçada do Lula que acabei decidindo falar sobre outra coisa.

Semana passada, a imprensa noticiou a existência de um vídeo no qual um prisioneiro americano era degolado. Ou decapitado. Ou melhor, não sei. Lendo a cobertura brasileira, simplesmente não dá para ter certeza.

Alguns diziam que ele foi degolado. Outros que foi decapitado. Muitos veículos conseguiram a façanha de dizer, na mesma matéria, que ele foi degolado e decapitado, como se ambos os termos fossem sinônimos que pudessem ser usados intercambiavelmente para evitar repetições estilisticamente desagradáveis.

A Folha de S.Paulo, por exemplo, em matéria de quarta-feira (12/5), disse uma coisa no título e outra já na primeira linha:

Civil americano é degolado por insurgentes

Insurgentes decapitaram um civil americano no Iraque e divulgaram imagens do assassinato em um website militante islâmico, alegando que se trata de vingança pela tortura de iraquianos na prisão de Abu Ghraib, em Bagdá.’

Para quem sabe a diferença (enorme) entre as duas coisas, ficou a dúvida: afinal, o pobre do homem foi degolado ou decapitado?



Beheading or flaying?

Fica mais fácil de entender lendo a imprensa internacional. Se em português ambas palavras soam parecidas, em inglês elas são bem diferentes.

Decapitar é beheading, ou seja, separar o corpo da cabeça.

Degolar é flaying, um termo mais obscuro e menos usado, que significa fazer um corte no pescoço para que a vítima sangre até a morte. Nas minhas leituras na língua de Shakespeare, só me deparei com flaying nas descrições de antigos sacrifícios, nas quais as vítimas tinham que ser flayed de acordo com rigorosos rituais.

A morte é a mesma, mas o fato de o corpo terminar com ou sem cabeça faz uma grande diferença.

Para reconhecer a enorme diferença entre os dois termos, basta lembrar que a degola sempre foi o método preferido de execução de prisioneiros entre gaúchos de ambos os lados da fronteira em nossas guerras ao sul. Na Revolução Federalista de 1893, milhares foram degolados. Até mesmo durante as revoltas da década de 1920, no Rio Grande do Sul, houve alguma degola.

E nunca ouvi falar da cabeça de ninguém sendo separada do corpo.



Oráculos definidores de palavras

Debati o assunto semana passada com os leitores do meu blog. As reações foram exaltadas. Parece que muitos dicionários dão, sim, degola e decapitar como sinônimos, ambos querendo dizer arrancar a cabeça.

Não sei porque as pessoas confiam tanto nos dicionários.

Em uma simplificação grosseira mas útil, eis como as palavras entram no dicionário:

O arguto dicionarista repara que existe uma nova palavra circulando: cadeira. Ele percebe que todos os falantes conversam entre si sobre cadeiras sem maiores problemas de compreensão a respeito do que é uma cadeira. Chamam de cadeiras uma variedade enorme de objetos que não têm, a princípio, muito em comum. Por outro lado, parecem saber instintivamente que sofás, bancos e poltronas não são cadeiras.

Claramente, pensa o dicionarista, há uma definição clara de cadeira nas cabeças dos falantes.

O dicionarista pesquisa, escuta, pergunta e acaba descobrindo os elementos em comum de todas as diferentes cadeiras. Com base nisso, ele escreve a definição de cadeira para o seu dicionariozinho:

‘Peça de mobília que é um assento apoiado sobre pés (‘partes para apoiar’), quase sempre em número de quatro, com um encosto e, muitas vezes, braços (‘partes fixas para apoiar ou descansar os antebraços’), com lugar para acomodar, com algum conforto, uma pessoa’ (fonte: Dicionário Houaiss).

Em todo esse processo, fica claro quem manda e quem obedece. Quem manda são os falantes, que criam, definem e usam as palavras de acordo com seu bel-prazer. Quem obedece são os dicionaristas, que correm atrás e tentam transformar o uso consagrado pelos falantes em uma definição de fácil digestão.

Por que então as pessoas cismam em se referir aos dicionários como se fossem verdadeiros oráculos, deuses definidores de palavras, aos quais devemos obediência e respeito?



Sonhar, sinônimo de dormir

Degolar (do latim decollare) significa passar uma faca pela frente do pescoço, cortando a carótida. Tirar a gola.

Com o tempo, sabe-se lá o motivo, o termo começou a se confundir com decapitar (do latim decapitare), que significa cortar fora a cabeça. Provavelmente, por soarem parecidos.

Um leitor opinou:

‘Etimologicamente ‘degolar’ significaria algo como ‘despescoçar’, já que vem de collum, que quer dizer pescoço. Como é impossível decapitar (ou ‘descabeçar’) sem causar algum grau de… despescoçamento, normal que no português as palavras sejam usadas intercambiavelmente, sinonímia que de resto é registrada pelos dicionários.’

Ora, que besteira. É impossível sonhar sem antes dormir e não é por isso que sonhar e dormir são sinônimos.

O ato de degolar e decapitar pode até ser parecido mas, em inglês, por exemplo, as palavras flay e behead são tão diferentes que jamais se confundiram nem ninguém sonharia em usá-las intercambiavelmente.

Degolar e decapitar se uniram não por seu significado, mas pelo seu som.

Ainda não é tarde para separá-las. São palavras diferentes que descrevem atos diferentes.



Babliblú do Flamengo no Maracanã

Nossa língua tem palavras para vitória, derrota e empate. Digamos que também existisse a palavra ‘babliblú’, um termo ambíguo significando ‘não-vitória’ e englobando elementos tanto de derrota quanto de empate.

Então, imagine que você lê a manchete: ‘Babliblú do Flamengo no Maracanã’.

Ok, você até sabe que ganhar, o Flamengo não ganhou. Mas perdeu ou empatou? Perdeu por WO ou de goleada? Não dá para saber. A palavra é ambígua.

Mas, já que existe uma palavra específica tanto para derrota quanto para empate, custava ter usado uma delas?

Não poderia o infeliz jornalista ter nos informado, já na manchete, de forma direta e não-ambígua, se o Flamengo afinal perdeu ou empatou?



Será que ele vai ficar bem?

Digamos que eu concorde. Digamos que degolar tenha mesmo passado a significar também decapitar. Digamos que hoje ambos os termos sejam sinônimos e possam ser usados intercambiavelmente.

Ainda assim, noticiar que o americano foi degolado é um exemplo de mau jornalismo e péssima redação.

Mesmo que degolar signifique degolar E decapitar, decapitar, por enquanto, só significa decapitar. É uma palavra simples, específica e direta.

Você diz que alguém foi decapitado e todo mundo entende. Não há dúvidas. Ninguém vai perguntar: ‘mas a cabeça dele saiu toda?’ ou ‘será que ele vai ficar bem?’ Nada disso. Todo mundo sabe que ele está mortinho da silva, com sua cabeça relativamente longe do resto do corpo.

Temos dois cenários:

** Se degolar significa, como eu digo, só passar a faca pelo pescoço, então a imprensa errou feio ao dizer que o americano foi degolado.

** Se degolar significa, como vocês dizem, tanto passar a faca pelo pescoço quanto arrancar fora a cabeça, então a imprensa também errou ao utilizar um termo ambíguo, que gera dúvidas em boa parte dos leitores, quando poderia ter informado, com precisão, o que houve com o pobre americano utilizando uma palavra mais específica. Decapitar.

De qualquer modo, não há justificativas para noticiarem a degola da vítima.



O jornal mais influente do Brasil

Vocês sabiam dessa? Pois é, eu também não, mas deve ser, pois deu no New York Times.

Adoro o New York Times. Leio todos os dias e é o meu jornal favorito. Mas essa foi pesada.

Jornalisticamente falando (e olha que eu costumo pecar pelo exagero), afirmações como essa devem sempre ser evitadas. São subjetivas, impossíveis de comprovar e deixam flanco aberto para contra-críticas que você não vai ter como responder.

Digamos que alguém (eu, por exemplo) lhe confronte: não, não é, não. O que você responde? É sim? E se eu repetir: não, não é não? Periga da tia nos expulsar de sala. Afinal, quem decide qual é o jornal mais influente, o melhor escritor ou o maior time do Brasil? Esses dados estão listados em algum lugar? Cadê a fonte dessa afirmação tão categórica?

Custava ter dito ‘um dos mais jornais mais influentes do Brasil’ e pronto?

Do New York Times de sábado (15/5): http://www.nytimes.com/2004/05/15/
international/americas/15BRAZ.html

Brazil´s Government Drops Its Threat to Expel a Times Reporter

By Warren Hoge (Published: May 15, 2004)

(…)The country´s most influential newspaper, O Estado de São Paulo, published an editorial on Thursday calling the president´s action a ‘monumental stupidity’.’

******

Colunista de Internet da Tribuna da Imprensa, editor do Guia de Blog SobreSites (http://www.sobresites.com/blog) e mantém o blog Liberal Libertário Libertino (http://www.liberallibertariolibertino.blogspot.com/); e-mail (cruzalmeida@sobresites.com)