Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Desqualificando a democracia

Surpreende a matéria publicada no jornal O Globo do dia 22 de março com o título ‘Lavoura Arcaica’ (Revista O Globo, nº 243). Não, a matéria é ruim mesmo. Preconceituosa, desinformada e demonstra o tipo de formação que o jornalismo que hoje vem se aceitando nas redações que tem por ‘licença pública’ informar a população. Falando de forma distraída de um Brasil arcaico, ela na verdade descaracteriza uma luta profundamente desigual. Ademais, é notória a perseguição da Rede Globo ao Brasil que tem voz própria, como foi o caso das comunidades de São Francisco do Paraguassu (BA) que acirraram a violência. Há muitas coisas que a gente não vê por aqui.

A matéria trata de um grupo de senhoras ‘remanescentes de um extinto quilombo’ – as ‘congas’ – que vivem ‘isoladas’ do mundo, ‘que vivem como no século 19’: não sabem ler e escrever, não têm filhos, bens e outras coisas civilizadas e reproduzem a ‘cultura escravista, andando em fila indiana’. Num ‘mundo sem fronteiras’, argumenta a matéria, elas estão ali quase por acaso, não fosse a caridade dos vizinhos e a sensibilidade um bondoso dono de terras que as deixa morarem em seus domínios. Na matéria, congas tem aspas, dono de terras sensibilizado, não.

Uma fresta na reportagem nos leva a outras interrogações: elas eram donas de grande parte das terras da vizinhança que foram tomadas pelo fazendeiro local. Ah, enfim, estas senhoras têm uma história: a de milhares de comunidades negras no Brasil que tiveram e têm suas terras usurpadas pela mentalidade ruralista ou especulação imobiliária. O governo Lula editou o decreto 4887 em 2003 e de lá para cá o DEM tenta derrubá-lo alegando inconstitucionalidade. O governo parece não se importar mais com o decreto que lhe rendeu parte dos votos para a reeleição, mas agora deve lhe custar muito politicamente.

Genocídio e etnocídio

A Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, a Fundação Cultural Palmares e o Incra, responsáveis por levar adiante o lema ‘um país de todos’ para os quilombolas, estão paralisados em todo o país. Ações locais dos ruralistas, dos partidos conservadores, de nacionalistas de plantão, impedem o andamento de processos constitucionalmente estabelecidos. Soma-se a isto o corte em verbas que transformou a promessa de terra e assistência rural para as comunidades negras rurais no maior blefe, depois do confisco da poupança por Collor.

Todas as vezes que os Estados nacionais ou os grupos que o controlam querem desclassificar uma determinada população ou pleito político-jurídico, classificam-na como atrasada, isolada, primitiva, em conflito e, neste caso, ‘arcaico’, o passado que se coloca inadequadamente no presente. Ao colocá-las fora da história destes interesses, também as colocam fora do direito que lhes assiste. Cria-se então um ambiente em que estas populações não têm o direito de dizer a sua identidade, os direitos a ela associados, de existir e se reproduzir socialmente como figura no artigo 261 da Constituição Federal.

Instituído pela própria Constituição Federal, o direito dos quilombolas é colocado sob suspeita por uma mentalidade que é remanescente do principal instrumento da sociedade escravista no Brasil: a violência. A matéria coincide com a pressão pela extinção do decreto 4887, as congas que são seis, o terreno onde elas ocupam que é de 200 m2 o sonho do DEM e do CNA: ‘Terras que estejam ocupando’. Irônico, mas um passo importante para a continuidade do genocídio e etnocídio no Brasil. Hoje são os direitos quilombolas e indígenas que são questionados. E amanhã quais serão?

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Antropólogo e docente da UFES, Vitória, ES