Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Dízimo de lá, dízimo de cá

A polêmica envolvendo as duas maiores emissoras de TV do Brasil, quase um embate religioso subliminar, está longe acabar. No momento da sociedade onde o deus dinheiro se cristaliza como referência contemporânea, o pano de fundo da briga é o mercado consumidor que aponta a queda da audiência hegemônica da Rede Globo, que dominou a tela até os anos 1990. Com o estilo inspirado como simulacro da Globo, a Record, ou ‘Recópia’, como dizem os membros das comunidades do Orkut simpatizantes da emissora carioca, está conseguindo ‘cutucar a onça com vara curta’ como se diz no interior de São Paulo, sede da emissora do pastor Edir Macedo.

As relações da produção de TV com os bastidores do poder e da igreja nunca constituíram mistérios para estudiosos do veículo, embora o público comum, aquele que define o target de audiência, não saiba muito dos detalhes dos imbróglios. Acusar a Rede Record de usar dinheiro do dízimo para promover a busca pelo padrão de qualidade remete, por analogia, ao passado, quando da implantação da emissora carioca, e faz refletir sobre o capital que aportou no Brasil em negócios facilitados com um grupo de comunicação americano e contrariando a Constituição brasileira.

Controle da opinião

O jornalista Carlos Lacerda – de codinome ‘metralhadora giratória’ –, nos anos 1960, fez um depoimento decisivo na Câmara dos Deputados, para esclarecimentos dos negócios envolvendo as Organizações Globo e o grupo Time-Life, conforme o livro A história da secreta da Rede Globo, do saudoso Daniel Herz (1981). Segundo o autor, ‘estavam estimulando no Brasil a formação de um controle de opinião pública, de um controle sobre a opinião, de tal modo que a meus olhos, como aos olhos informados – encontra-se o perigo progressivo e crescente de, dentro em breve, não saber mais o povo o que lhe interessa saber, mas que pelo menos a outro povo interessa’. Não se parece com o embate contemporâneo?

Ainda segundo Herz, foram muitos os dólares que chegaram para a implantação da TV Globo: ‘No dia 21 de dezembro de 1965, a TV Globo recebeu a última remessa de dólares enviada pelo Time-Life neste ano. Essa remessa tinha o valor de US$ 118 mil, o que era equivalente a Cr$259,6 milhões ao câmbio da época. Com essa remessa, desde julho de 1962, o Time-Life já havia enviado mais de US$ 4,52 milhões à TV Globo.’

São Paulo ou Rio de Janeiro?

O desconforto que as ações do governo militar promovia na produção midiática estimulou a reação em vários setores da sociedade. Um ‘Manifesto à Nação’ foi publicado na revista O Cruzeiro, nº 19, de fevereiro de 1966, assinado por empresas de comunicação lideradas pelo Sindicato dos Proprietários de Jornais e Revistas do Estado de São Paulo, Associação das Emissoras de São Paulo e Sindicato das Empresas de Radiodifusão no Estado de São Paulo. Percebe-se a preocupação com os caminhos da radiodifusão na formação da opinião pública. Destacamos parte do manifesto:

‘Não se pode dizer que a opinião pública brasileira tenha sido inteiramente surpreendida pelas últimas divulgações de fatos relacionados com a infiltração de capitais estrangeiros na indústria jornalística nacional, bem como na exploração de concessões de rádio e televisão. Circulam, com efeito, por aí, numerosas publicações – revistas principalmente – que não escondem a origem dos capitais que as sustentam e não disfarçam a origem extranacional do seu pensamento, dos seus sentimentos e, portanto, dos seus interesses também. O que pouco se conhecia era a extensão desse mal, cuja avaliação passou a tornar-se possível mercê de várias denúncias, com revelações sobre o interesse de determinados capitais estrangeiros não só pela exploração de empresas jornalísticas brasileiras, mas pela constituição também de vastas redes nacionais e regionais de rádio e televisão. E nova contribuição acaba de se trazer à elucidação deste problema, com revelações tanto sobre o vulto dos empreendimentos levados já a cabo neste terreno por capitais de fora, quanto sobre esta outra ilegalidade, consistente na entrega da direção de jornais,revistas e empresas de radiodifusão a estrangeiros ou testas-de-ferro seus (O Cruzeiro, ano XXXVII, nº 19, p.14) (continua).

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Mestre em Comunicação e Tecnologia, Juiz de Fora, MG