Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Dos escritores ao astrólogo

Todo começo de ano, as publicações menos conceituadas e os canais abertos de TV não nos deixam esquecer que a Idade Média é aqui. Bolas de cristal, zodíaco, numerologia e até borra de café se mantêm firmes na moda e na mídia como respeitáveis maneiras de tomar dinheiro dos outros à custa de sua esperança e fragilidade.

Uma semana depois de um cataclismo de proporções apocalípticas que matou 150 mil pessoas e não foi previsto por nenhum guru, como sempre, multidões se perfilaram para escutar dos mesmos bruxos o que o ano de 2005 lhes reserva, com incrível precisão e taxas de acerto impressionantes. Deve ser alguma maldição dos deuses. Esqueçam as Cassandras: os videntes foram condenados a descobrir onde você perdeu suas chaves, os médiuns a saber a cor favorita do seu falecido bisavô, mas não se uma onda gigante irá varrer sua cidade do mapa. Fazer o quê?

Em defesa da mídia televisiva ainda se pode dizer que os programas de entretenimento não são feitos por jornalistas ou não têm intuito jornalístico. Os programas de variedades não consultam o departamento de jornalismo da emissora para fazer suas pautas. No entanto, o telespectador não sabe disso e nem deveria precisar saber. Tudo que ele sabe é que logo após o telejornal, em que as notícias e depoimentos são confiáveis, vem um outro programa. Por que as novas notícias e depoimentos também não seriam confiáveis se o canal é o mesmo? Como pode um dono de TV, tão criterioso ao apresentar o noticiário, ser tão irresponsável logo a seguir?

Do ponto de vista do telespectador, é preciso ver uma certa esquizofrenia na comunicação da emissora para julgar que ela pode ser perfeitamente sã em um minuto e, no seguinte, só dizer bobagens. Sabemos que não é isso que acontece e que, embora nem todos os programas de um canal tenham a mesma credibilidade, os menos respeitáveis ganham respeito por associação. E, claro, porque passam na TV.

Ficção pura

Mas, e no caso da mídia impressa? Embora ela seja responsabilidade quase exclusiva de jornalistas, alguns veículos podem muito bem se destinar à diversão. Ninguém se choca quando a revista Claudia publica um guia astrológico para o ano novo. Talvez isso aconteça pelos mesmos motivos por que ninguém se choca, digamos, com a revista UFO.

Em ambos os casos, as crenças são socialmente aceitas e até os menos entusiastas quase sempre as vêem com benevolência. A única diferença é que, na revista feminina, ao menos há outras coisas para ler além da importância da Lua para o seu relacionamento.

Em geral, quanto mais o perfil de um veículo se identifica com a notícia e não com o entretenimento, maior é o seu compromisso com o relato jornalístico íntegro, os dados checados, as linhas tão claras quanto possível entre fatos e opiniões. Mas essa linha começa a ficar menos clara nas seções de cultura, onde há muito mais opiniões do que fatos. Lá, a objetividade dá lugar às dicas para cinema, teatro e restaurantes, às críticas de arte – opinativas por obrigação – e até ao extremo oposto dos fatos, que é a ficção pura dos cronistas. Não por acaso, é nesse meio que se publicam os quadrinhos, as palavras cruzadas e o indefectível horóscopo.

Critérios de veracidade

Quem lê jornal pode julgá-lo tão esquizofrênico quanto a TV. Os números da loto conferem. A previsão do tempo está certa. A declaração do ministro é exata. Mas a semana de Áries está meio esquisita…

Bem, e daí que o jornal publica o horóscopo, não é mesmo? Ele agrada os crédulos, diverte os incrédulos e está separado da realidade por várias outras páginas de ficção. Ninguém poderia levá-lo a sério.

Poderia?

O horóscopo já é levado a sério o suficiente para ser publicado e lido quase universalmente, o que inclui conceituados jornais que não abrem mão dele. Isso já é bem mais do que se pode dizer de artigos de divulgação científica. Será que um mundo em que a integridade dos editores os fizesse recusar a publicação de horóscopos seria o mesmo em que Ronald Reagan e François Mitterrand tomaram decisões de Estado baseados nos conselhos de seus astrólogos? Dificilmente.

O problema é que existe uma importante questão de honestidade jornalística em jogo. Se o editor que mantém o horóscopo sabe que está enganando os leitores, está sendo desonesto. E se não sabe, que critérios de veracidade ele tem para julgar o conteúdo das demais matérias? Parece que, nos cadernos de cultura, essa é uma questão que só interessa aos idiotas da objetividade que escrevem o restante do jornal. Um editor que aceita o horóscopo no meio do seu caderno não tem razão alguma para enaltecer a astrologia também na primeira página.

Veredas para o besteirol

E foi exatamente isso que aconteceu com o Caderno 2 do Estado de S.Paulo, na primeira edição deste ano. A matéria ‘O futuro segundo Quiroga’ traz na capa, em página inteira, a coleção usual de platitudes e frases vagas que merecem ser repetidas aqui para que o leitor tenha dimensão do estrago:

** ‘A Terra está em via de grande e positiva transformação’;

** ‘Somos capazes de perceber as coisas objetivamente e subjetivamente também’;

** ‘A astrologia é isso, sem certo e errado. O cosmos dá lugar a tudo’;

** ‘A astrologia afirma que acompanhamos ativamente o processo cósmico’;

** ‘O deus dinheiro será derrubado, pois se tornará inútil e sociedade humana se organizará civilmente, com solidariedade e amor’.

O astrólogo afirma que ‘já se iniciou o alinhamento da Terra com o centro da galáxia’, mandando às favas a realidade de que dois pontos estão sempre alinhados. Mas isso não impede a repórter Patrícia Villalba de entoar loas ao mago da casa, ainda que ela própria reconheça que seu horóscopo não raro diga o óbvio. Para ela, Quiroga é ‘avesso aos conceitos rasos da sociedade atual’; ‘o astrólogo mais famoso, conceituado e – impossível não dizer – charmoso do país’, teria ‘imprimido credibilidade ao horóscopo de jornal desde que começou a assinar sua coluna no Estado, em 1986′ e é ‘especialmente preocupado com o sistema que massacra as pessoas’.

Ironicamente, Quiroga se considera um realista, critica intermediários que ‘durante a vida inteira ficam te vendendo soluções que não solucionam nada’ e admite que ‘a astrologia pode ser usada para perpetuar a dependência das pessoas’. Quando ele afirma que ‘nossa origem não é no mundo animal, mas em outro lugar. Nós não somos do chão, somos das estrelas’, isso não é somente uma metáfora metafísica. É literalmente como ele vê a origem de nossa espécie, de acordo com o que já expressou em uma de suas colunas:

‘Que a ciência tente convencer nossa humanidade que descende dos macacos não significa que seja verdade, tanto que até hoje não se encontrou o elo perdido que confirmaria essa hipótese. Embora a publicidade tenha convertido essa hipótese em lei, o coração de nossa humanidade nem sempre identifica o animal em sua origem, mas quando decide encará-la assim, cria um mundo animal para ela.’

A publicidade converteu essa hipótese em lei??

O perigo das astrologia, como se vê, muitas vezes está no fato de que o desprezo pelo pensamento crítico abre portas para todo tipo de besteiras e a perda completa de contato com a realidade. Segundo recente pesquisa do Ibope, nada menos que 31% dos brasileiros crêem que Deus criou o homem nos últimos 10 mil anos. Se você acredita em astrologia, por que não também em criacionismo? Se a ciência não sabe nada a respeito dos astros e sua influência sobre nós, por que deveríamos acreditar em seu relato sobre o que aconteceu milhões ou bilhões de anos atrás?

Sexto sentido

No fim das contas, o que originalmente deveria ser uma pequena seção do jornal que não era para levada a sério jornalisticamente acabou dando matéria de capa, com página inteira, e ainda por cima clama abertamente por outros tipo de obscurantismo. Eu me pergunto que justificativa um editor-chefe de jornal bem conceituado dá, a si e aos outros, para permitir que esse tipo de conteúdo passe por jornalismo. Não sei se é mais preocupante que ele tenha dois pesos e duas medidas para o caderno de cultura e os demais cadernos, ou que use os mesmos critérios para todo o jornal.

Ainda não vi a astrologia galgar outras seções, mas creio que isso não se deve a uma imaginária divisória de qualidade, somente à separação de assuntos. Apenas dois dias antes do texto sobre Quiroga, a seção internacional do Estadão publicou uma notícia que mostra isso bem claramente.

Em 30 de dezembro, a mídia noticiou que ambientalistas do Sri Lanka afirmaram ‘não haver evidência de mortes de animais em grande escala no parque nacional de Yala – o que indica, segundo eles, que os bichos devem ter detectado a proximidade das ondas e fugido para locais mais elevados’.

Corretamente, a Folha de S.Paulo publicou a matéria sob o título ‘Animais escapam em reserva no Sri Lanka’, e outros veículos deram redações semelhantes. No entanto, o Estado de S.Paulo foi bem mais além, desinformando com o título ‘Sexto sentido salva animais de reserva no Sri Lanka’. Com subtítulo ‘nenhum morto’, a matéria afirma que ‘funcionários de um parque nacional do Sri Lanka não encontraram nenhum animal morto’ e dá o depoimento do vice-diretor do Departamento Nacional de Vida Selvagem, H. Ratnayake: ‘Não há elefantes mortos, nem mesmo um coelho. Acho que os animais têm um sexto sentido. Eles sabiam o que iria acontecer’.

A livre teorização do entrevistado não foi sequer citada em outros veículos. Mas para o Estado, uma especulação pessoal sobre a parapsicologia dos quadrúpedes, que não prima exatamente pelo rigor científico ou pela comprovação dos fatos, virou título da matéria. Já para a Folha, por exemplo, não havia evidência de mortes em grande escala, mas o Estado publicou declarações bem mais ousadas de que nenhum animal morto foi encontrado. Ora, nem sequer uma lagartixa? É óbvio que isso depende de quanto se procura.

Elefantes chegaram a salvar crianças dos tsunamis, segundo reporta a mesma matéria do Estadão. Coelhos atingem velocidades máximas de 45 a 70 km por hora. Não há motivos para crer que eles devessem ser atingidos nem para criar hipóteses sobre capacidades animais, mesmo porque eles morreram aos milhares em outras regiões. No entanto, Ratnayake prefere acreditar em sexto sentido e o Estado transforma essa crença em afirmação jornalística.

Pobre jornalismo

É difícil não traçar um paralelo com as patacoadas astrológicas a que o jornal dá atenção. Em ambos os casos as opiniões dos místicos viraram a opinião do jornal. Em nenhum dos incidentes se viu consideração pelo rigor das evidências, pela busca de confirmações independentes e por tudo aquilo que deveria caracterizar o bom jornalismo.

Em comemoração aos seus 130 anos de existência, O Estado de S.Paulo está fazendo uma campanha em que exibe os nomes de grandes escritores que escreveram para o jornal. Por algum motivo, creio que as previsões de um astrólogo não irão figurar na mesma galeria que os textos de Euclides da Cunha e Olavo Bilac, nem serão exibidas na campanha. Espero sinceramente que, quando confrontada com essa disparidade, a direção do jornal reveja sua política.

Agora, talvez mais grave do que o próprio evento seja o fato de que nem uma única linha se escreveu sobre ele no Observatório. O Estadão certamente foi lido por muitos jornalistas, e várias críticas às edições da semana foram tecidas na matéria principal do OI nº 310 [‘Ondas gigantes e redações vazias’, 4/1/05, remissão abaixo]. Havia até espaço para repreender um crítico de cinema que não viu o filme, mas a exaltação da astrologia como se fosse coisa séria não despertou atenção de ninguém.

Pobre jornalismo brasileiro. E que a vergonha paire sobre seus críticos.

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Engenheiro, São Paulo (SP)