Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

E a USP não faria diferente…



‘Espero que o seu caminho não seja mais obstruído ou alavancado por esse tipo
de coisa.’ (Serginho Groisman, no Altas Horas, para a estudante da
Uniban)


Pouca gente poderia prever que os jornalistas Reinaldo Azevedo e Luis Nassif,
que volta e meia se engalfinham em seus blogs, viessem a concordar a respeito de
algum assunto. Pois concordaram. Ambos saíram em defesa da estudante da Uniban,
que foi hostilizada por um bando de alunos por usar um vestido curto. Geisy
Arruda, que começou escondida pelo pseudônimo de Michele Vedras em reportagem da
Folha de S.Paulo (30/10), hoje desfila nos principais programas da
televisão brasileira, incluindo o Fantástico, da Rede Globo, ao qual
compareceu no domingo (15/11). A incompetência da Uniban em administrar o caso,
levando a uma desastrada expulsão da aluna, contribuiu para que ela se
transformasse numa heroína dos direitos das mulheres, inspirando artigos de
renomados intelectuais.


Como sempre, o Brasil só se une por motivos tortos. A cada semestre,
vestibulandos são submetidos a trotes que colocam em risco a sua própria
integridade física. Muitos sofrem graves queimaduras e outros entram em coma
alcoólica devido à brutalidade dos trotes. As mulheres estão entre as maiores
vítimas. Nos últimos anos, várias reportagens têm mostrado casos de
vestibulandas alcoolizadas, fazendo pedágio nas ruas, sob o comando de
veteranos, que as oferecem aos motoristas como objetos sexuais ainda que
simbólicos.


Chacota com o cadáver


Em agosto deste ano, na Universidade Federal Fluminense, uma caloura foi
vítima de trote sexual, segundo denúncia do colunista Alcelmo Gois, do jornal
O Globo. Reportagem do jornal, publicada em 21 de agosto, conta que oito
veteranos levavam as calouras mais bonitas para uma sala reservada e davam a
elas duas opções: ir para as ruas conseguir 250 reais ou fazer sexo oral com
eles. Um veterano mais forte, segundo uma estudante, ficava barrando a porta da
sala, intimidando as alunas que não queriam se submeter ao trote.


E não é o primeiro caso. Em 3 de abril de 2000, segundo matéria da Folha
de S.Paulo
, um grupo de veteranos da Universidade Federal do Mato Grosso, em
22 de março daquele ano, ‘fez um grupo de 12 calouras participarem de uma
brincadeira com um pênis de borracha, simulando sexo oral com o objeto’. Segundo
a Folha, as cenas foram flagradas por fotógrafos do Diário de
Cuiabá
, que publicou uma foto do trote em sua edição.


E quais foram as medidas tomadas contra esses bárbaros trotes sexuais?
Nenhuma. Em parte porque as universidades públicas são intocáveis. Seus
estudantes têm salvo-conduto para cometer toda sorte de atrocidades, sob a
alegação de que, em campus universitário, polícia não entra. Por isso, a
sacrossanta USP carrega até hoje um cadáver insepulto – o do estudante de
Medicina morto há dez anos num trote violento. Na época, professores uspianos
ajudaram a blindar os suspeitos pelo crime, perdoando até a chacota que um deles
havia feito com o cadáver da vítima.


Arautos da barbárie


A barbárie protagonizada pelos estudantes da Uniban – juntamente com a
suposta vítima que a iniciou – é um processo cultural com raízes muito mais
profundas do que uma mera guerra dos sexos. Mas, no país do futebol, o debate
intelectual é sempre um embate entre torcidas organizadas. O caso da estudante
acabou perdendo todas as suas complexas nuances, reduzindo-se a uma disputa
entre potenciais estupradores e sua vítima inocente, logo transformada em
heroína graças à sua desproporcional expulsão pela Uniban. Uma universidade que
deixa uma aluna entrar em sala de aula com aquele tipo de vestuário perde
automaticamente o direito de expulsá-la, caso o seu modo de se vestir provoque
tumulto. Só por isso. E não porque Geisy Arruda não merecesse ser punida, ainda
que sem o mesmo rigor que seus algozes mereciam.


É lamentável que toda a imprensa se arregimente para transformar a inadequada
conduta da aluna num suposto direito universal das mulheres. No artigo ‘A turba
da Uniban’, publicado na Folha de S.Paulo (5/11), Contardo Calligaris
teoriza sobre um suposto ódio do homem ao desejo feminino, que, segundo ele, se
expressa até nos xingamentos às mães dos árbitros de futebol: ‘Os membros das
torcidas e os 700 da Uniban descobrem assim um terreno comum: é o ódio do
feminino – não das mulheres como gênero, mas do feminino, ou seja, da idéia de
que as mulheres tenham ou possam ter um desejo próprio.’ E pede desculpas às
feministas por ter acreditado que ‘o feminismo tinha chegado ao fim de sua
tarefa histórica’, isto é, que ‘depois de 40 anos de luta feminista, ao menos um
objetivo tivesse sido atingido: o reconhecimento pelos homens de que as mulheres
(também) desejam’.


Contardo Calligaris não devia pedir desculpas ao feminismo, mas increpar os
movimentos pós-modernos que, desde Michel Foucault, se tornaram arautos da
barbárie. Eles são responsáveis pela brutalização cada vez mais acentuada dos
machos da espécie – o que, obviamente, reduz as mulheres à condição de fêmeas a
serem submetidas pela força. As benesses concedidas aos presidiários, por
exemplo, com as bênçãos do próprio STF, penalizam, primeiramente, as suas
respectivas parceiras e filhas.


Motéis-presídios


Em Goiás, em 5 de novembro último, o jornal O Popular publicou uma
reportagem com o seguinte título: ‘Denunciado sexo em presídio para pagar
dívida’. Segundo a reportagem, ‘pais encarcerados em Anápolis entregam as filhas
a outros presos para quitar seus débitos’. A denúncia foi pela mulher de um
detento que não suportava mais a situação. Não é a primeira vez que isso
acontece. Nesse mesmo presídio, uma menina de 12 anos foi vendida por seu pai
para um detento a troco de um pacote de fumo trevo. Eu mesmo, numa audiência
pública, denunciei esse caso no Senado Federal, diante do presidente da Comissão
de Pedofilia, Magno Malta, que, pelo que me consta, nada fez para apurar a
denúncia. A própria Pastoral do Menor já denunciou casos de prostituição de
menores em presídio, mas jamais se coloca contra as visitas íntimas, que
fomentam esse tipo de crime.


Por que os intelectuais brasileiros, ao invés de se preocuparem com a
estudante da Uniban, não se ocupam desse verdadeiro genocídio das mulheres que
vem sendo praticado a partir dos presídios graças às benesses absurdas que se
oferecem a assassinos, latrocidas, estupradores e traficantes? Hoje, o Estado
lhes garante até os chamados ‘direitos sexuais’, que não é outra coisa senão
estupro legalizado. O pretexto é que eles precisam do contato da família para se
recuperar.


Ora, um presidiário recuperável é o primeiro a dizer para suas mulheres e
filhas jamais o visitarem na cadeia. Um homem que tem a coragem de chamar sua
companheira para fazer sexo com ele dentro de uma cela não pode ser considerado
um ser humano. Está nos níveis inferiores da escala zoológica. Mas o Brasil
segue mantendo as regalias desses monstros, sem se preocupar com a sina das
mulheres e crianças que lhes servem de repasto dentro das próprias cadeias,
transformadas em motéis-presídios custeadas pelo contribuinte.


Feminino vai além da carne que deseja


Na verdade, não é o Brasil que quer assim. Se dependesse do povo simples,
bandido não teria esse tipo de regalia absurda. A leniência criminosa com que
são tratados pelo Estado decorre da ideologia do crime que impera nas
universidades, que se tornaram adeptas de Sade. Ao analisar os ensaios de
Foucault e seus colaboradores sobre o assassino Pierre Rivière (que, em 1835,
matou a mãe, a irmã e um irmão), o historiador italiano Carlo Ginzburg, no livro
O Queijo e os Vermes, denuncia o ‘irracionalismo estetizante’ desse tipo
de análise, que tem continuidade na obra de Michel Maffesoli, apropriada por
muitos pedagogos brasileiros. Eis o que afirma Ginzburg sobre essa espécie de
ética da barbárie:




‘As vítimas da exclusão social tornam-se os depositários do único discurso
que representa uma alternativa radical às mentiras da sociedade constituída – um
discurso que passa pelo delito e pelo canibalismo. (…) É um populismo às
avessas, um populismo `negro´ – mas assim mesmo populismo.’


Ora, a mulher só existe como pessoa na civilização. Nesse ‘irracionalismo
estetizante’ denunciado por Ginzburg impera o estado de natureza e, nele, a
mulher não passa de fêmea submetida à força do macho e aos ciclos do seu corpo.
Entretanto, quase toda a produção acadêmica atual – filha do maio de 68 – é um
flerte incessante com os instintos. Antes de criticar os alunos da Uniban,
Calligaris deveria protestar contra seus mentores, que, por meio de teses
acadêmicas, incentivam um verdadeiro culto à barbárie, com base na obra de
intelectuais franceses, como Michel Foucault e Michel Maffesoli.


É o caso de uma tese de doutorado em Educação defendida na USP, em 1996, pela
pedagoga Sueli Aparecida Itman Monteiro, professora efetiva da Unesp de
Araraquara. A pesquisadora estudou uma gangue que infernizava a vida de uma
escola pública do interior de São Paulo, partindo do princípio de que a
violência praticada pelos membros da gangue decorria da incompreensão de que
eram vítimas por parte dos professores da escola. Valendo-se das filosofices de
Michel Maffesoli, a autora louva uma suposta ‘razão aberta’ da gangue em
contraposição à razão fechada dos professores. E seu entusiasmo não arrefece nem
mesmo diante do modo bárbaro como os machos daquela horda urbana tratavam suas
fêmeas, como se depreende do seguinte trecho da tese:




‘Desenvolviam uma forte amizade no grupo, que os levava a uma socialização de
tudo o que possuíam. Em nome da amizade grupal aceitavam que uma garota, depois
de ter namorado, terminasse o namoro e iniciasse outro relacionamento, desde que
também fosse com um garoto do grupo.’


Sem dúvida, essa tese defendida na USP – a universidade que arrasta um
cadáver insepulto – poderia servir de argumento para a gangue da Uniban, que
reagiu feito leões aos sinais inconseqüentes da gazela. Esse tipo de tese, sim,
tem ‘ódio ao feminino’, pois o feminino, ao contrário que pensa Calligaris, vai
muito além da carne que se deixa desejar. Ou as fêmeas dos animais também seriam
femininas.

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Jornalista e mestre em Sociologia pela UFG, Goiânia, GO