Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

E mais: menos Michael Jackson

A página ‘Logo’, de O Globo, sempre muda de lugar. É um espírito que anda, um fantasma, um raio que a gente não sabe direito onde vai cair – uma das melhores coisas do jornal. Em seu nomadismo, ela muda também de cara. A cada aparição, faz uma plástica. Por falar nisso, há dois domingos ela tratou de Michael Jackson. Saiu com uma frase minha qualificando o morto: ‘Um Peter Pan-sexual proibido para maiores’. Depois que li a frase impressa (uma coisa é dizê-la; outra, bem distinta, é lê-la), achei que ela é meio de mau gosto. Foi mal. Desculpa aí, ó.


Depois, pensei um pouco melhor e me forcei à conclusão de que não foi mal coisa nenhuma. Uma revista francesa diz que o dançarino pop era a ‘eterna criança’. Eu também posso dizer. Depois, não fiz nenhum juízo de valor. Apenas constatei a criança e seu intenso apelo erótico. Para mim, havia nele um gênio eletrocutado de espetáculo, cujo tempo interior tinha se congelado na idade mental (infantil) do espetáculo, com quem guardou uma sintonia intensíssima. Especular sobre o espetáculo é um dos meus passatempos prediletos e, em torno disso, mobilizo com ânimo a meia dúzia de neurônios que ainda me servem (os outros dezessete também funcionam, mas se rebelaram contra mim). Não obstante, não me demoro sobre isso. Chega.


Não sou assinante de quase nada neste mundo. Assino alguns cheques ocasionalmente, três jornais diariamente, pouquíssimos serviços de internet e, semanal ou mensalmente, duas ou três revistas. A piauí é uma delas. A melhor chamada, a melhor de todas sobre a morte de Michael Jackson eu vi na piauí. Estava lá, no canto superior direito, numa tarja preta com inclinação de 45 graus: ‘Exclusivo! Nenhuma linha sobre Michael Jackson’. Nossa mãe. Nenhuma linha mesmo (fora aquelas três)? Fiquei um tempo envolvido numa interessante interrogação: e se, em lugar de ‘nenhuma’, eles escrevessem ‘nem uma’? Teria sido melhor? Sou capaz de passar dias em torno de dilemas assim, mas não me demoro sobre isso também. Outra vez: chega.


Em todos os lugares há notícias sobre a morte daquele que foi chamado de ‘Menino Ben’. Em todos os lugares, sem exceção. Até no site da própria piauí fui atropelado por um artigo de João Moreira Salles tratando de um documentário que o jornalista Martin Bashir realizou com o autodeclarado Peter Pan, cuja idade, é o próprio Michael quem confirma, seria de quatro anos. Nosso Peter Pan é onipresente. Em todas as bancas de revistas, nos sites, nos jornais, na TV. Olho para o céu de inverno e as nuvens formam para mim o corpinho angelical que ele exibiu para as lentes de uma fotógrafa famosa. A imagem irrompe das paredes, dos pneus dos ônibus, da luz que acabo de acender no quarto. Menos na piauí impressa, que, em matéria de onipresenças, preferiu trazer na capa o Deus de Michelangelo surfando numa onda ultragráfica. Um sol amarelo pálido sobre o fundo azul-calcinha cumpre a função de luz tênue. Crédito para Tom Burns. Até Deus pega onda – menos a piauí, que preferiu não cair nessa do velório pop.


Nada como letra preta em papel claro


O crescimento da revista no Brasil é alentador. Nessa temporada de deslumbramentos internéticos, em que todos procuram esbanjar intimidades com o digital, bancando gênios das soluções rápidas, artífices das mensagens relâmpago, servis a leitores sem tempo e quase sem espírito, que não obstante têm fome de ‘interagir’, eis que surge uma publicação de papel amarelado coberto de letras pretas, com textos longos, muito longos, em reportagens que custam meses de apuração e revelam um caminhão de novidades desconcertantes. Em plena primavera das esferas públicas interconectadas, do jornalismo online, das ciberreportagens e das tais redes sociais, a maior novidade da imprensa é esta: papel, o velho papel, letra pequena, texto compriiiido a se perder de vista. Contra todas as previsões.


Eu me lembro de quando folheei o primeiro número da piauí. Eu o estendi feito toalha sobre a mesa da repartição pública em que dei expediente em Brasília. ‘Isso aqui não vai dar certo’, balancei a cabeça, entristecido. Ainda bem que errei. Ainda bem que existe gente que sabe escrever – e gente que gosta de ler. Que nesse universo improvável não esteja Michael Jackson, tanto melhor.


Entre exclusividades e banalidades


Poucas vezes a palavra ‘Exclusivo!’, devidamente acrescida de um bom ponto de exclamação, foi tão pertinente: ‘Nenhuma linha sobre Michael Jackson’. A inexistência daquele assunto na piauí de fato é uma notória exclusividade. É só na piauí que você NÃO acha NADA sobre Michael Jackson. Santa exclusividade.


O timbre do ‘Exclusivo!’, banalizado pelo alarido dos furos jornalísticos feitos de fac-símiles daqueles ofícios incompreensíveis em papel timbrado, tingidos por grifos em vermelho e flechinhas que apontam para a foto do senador fulano, seu sobrinho, seu neto, sua nora que não foi nora, seu mordomo, sua… sua quem mesmo?, bem, o ‘Exclusivo!’ virou figurinha fácil, carne de vaca, arroz de festa. Nada mais coletivo que o uso disseminado e descontrolado do ‘Exclusivo!’. É a publicidade que se permite no jornalismo.


Na publicidade propriamente dita, o ‘Exclusivo!’ se permite ser mais gritante, mais apelativo. Vivemos, como já se sabe, não apenas na sociedade do ‘ter’: vivemos sob o imperativo de ter o que o outro não tem. Ter não basta. É preciso ter o que o outro não tem. Uma propriedade só é prazerosa quando, mais que privada, é privativa, quando priva os demais de seu gozo. O prazer de ter passa pelo prazer de impor a privação aos demais. Ter só é bom quando do outro lado do muro é sinal de não ter. Vai ver que é por isso que o selo ‘Exclusivo!’ é assim tão magnético no cacarejar publicitário. As marcas de camisa são exclusivas, os cartões de crédito são exclusivos, os automóveis são exclusivos, os hotéis, as bicicletas.


O ‘Exclusivo!’ é a face chique da moeda da exclusão. É a sua face aceitável. Outro dia havia num jornal de domingo a oferta de um prédio de apartamentos que era cercado por uma área verde tão extensa, mas tão extensa que comportava uma árvore ‘exclusiva’ para cada um dos apartamentos. Pense bem: uma árvore ‘exclusiva!’. Como questões assim têm o dom de me paralisar, fiquei um tempão às voltas com imaginar o que as pessoas fariam com as suas árvores ‘exclusivas!’. Eu me perguntava: de que modo impediriam os demais condôminos de se aproximar de suas árvores ‘exclusivas!’?


Sei bem que, em edifícios tão ‘exclusivos!’, é possível que cada apartamento tenha seu animal de estimação – ‘exclusivo!’, ele também. É possível, por certo, que alguns desses animais sejam cachorros. É possível, portanto, que o cão do apartamento 51 não esteja autorizado a fazer xixi no tronco da árvore ‘exclusiva!’ do apartamento 141. Caso venha a desobedecer o veto, o cão dará ensejo a um ponto de pauta na próxima assembléia de condomínio. Fora isso, não enxerguei aplicações para a exclusividade das árvores, mas sigo pensando. Donde mudo de assunto.


Voltando ao aprazível ambiente do jornalismo, a palavra ‘Exclusivo!’, como eu dizia, sofreu tamanha banalização que, não raramente, algumas notícias que se vendem como ‘Exclusivas!’ não são tão ‘Exclusivas!’ assim. Qualquer um acha que pode ir declarando assim sem mais nem menos que qualquer coisa é exclusiva. Deu-se uma hiperinflação de exclusividades. Hiperinflação que não contaminou a piauí, naturalmente. O furo memorável da piauí sobre o rapaz que alegava ter quatro anos de idade – o furo de nada dizer sobre ele – é efetivamente um feito exclusivíssimo. Só ela fez isso. Sua não-matéria disse muito, muito mesmo, sobre a imprensa que nos cerca.


Ao ter certeza de que seria a única a não tocar no assunto – ou não teria usado o selo ‘Exclusivo!’ – ela identificou, de modo incisivo, a excitação com que a imprensa obedece à indústria do entretenimento. Enquanto as outras publicações que, sem exceção, ao menor assovio do adestrador, correm para fazer festa – ou luto festivo – para as celebridades, a piauí ficou na dela. Recusou-se a entrar na onda e, melhor que isso, denunciou que o cão de guarda, velho símbolo da imprensa, deixou-se amansar e hoje abana o rabo para o circo das diversões. A piauí pôs o dedo na ferida.


A não ser que…


Epa


A não ser que a ferida tenha posto o dedo nela. Sim, isso mesmo: uma hipótese que não pode ser descartada é a de que a piauí não deu nada sobre Michael porque não teve tempo hábil antes do fechamento. Por essa hipótese, ela até trataria do velório pop se tivesse outros prazos, mas não os teve. Assim, só lhe restou a chamada na capa de última hora. Teria sido esse o seu recurso para dizer ao leitorado que a redação não vive em outro planeta, que sabe muito bem que Michael Jackson morreu, mas não explorará o tema dessa vez.


Por essa perspectiva, a faixinha negra, em cor de luto, no alto da capa, teria sido não um ataque ao cão de guarda que ficou afável além da conta, mas uma rendição ao espetáculo. A revista não teria se sentido à vontade para não tocar no assunto, para ignorá-lo com todas as letras, quero dizer, ignorá-lo sem uma única letra sequer, e cometeu ao menos aquela chamadinha, registrando, à revelia, a sua própria hesitação. A existência de um texto no site da revista reforça essa hipótese: se houvesse prazo, teríamos um texto inteligente sobre o crooner dançante nas folhas largas da versão impressa da piauí.


A crer nessa hipótese, enfim, foi o espetáculo quem meteu o dedão na capa da piauí. O que, pensando bem, não muda nada. Incrível. O mais luminoso de tudo é que não faz tanta diferença se a chamada genial saiu da decisão arrogante de não dar mesmo uma linha sobre o astro ou se ela brotou da impossibilidade de dar uma linha que fosse. Mesmo na segunda alternativa, a revista afirma de modo cortante que, em suas páginas, esse tipo de coisa não faz a menor falta. E isso é o que mais conta. Como saldo, prevalece a ironia da solução encontrada, a ironia mais que feliz de uma chamada de capa para uma não-matéria.


Outro chavão das capas de revistas é o velho ‘E mais:’. Pois bem, é como se a piauí pusesse em sua capa algo como: ‘E mais – agora menos’. Ou: ‘E mais – aqui você tem menos: menos Michael Jackson’. Reincidindo em outro lugar comum, esse ‘menos’ é ‘mais’.


Saboreei especialmente a piauí, a 34. A história da ministra Dilma, as palestras de Antonio Candido, o filho do Pelé… Saboreei a edição como quem saboreia a descoberta de que existe vida além da morte (de Michael). Inclusive na imprensa.

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Jornalista, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP