Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

E o jornalismo com isso?

Será que a mídia tem apenas a missão de prender a atenção do público, esmiuçando detalhes de uma notícia e nada mais? A mídia chafurdou cada detalhe, fazendo com que o menor destes se transformasse num apelo emocional sensacionalista, trazendo mais audiência para os seus telejornais ou será que havia apenas o interesse de informar?

A estratégia de explorar os principais ingredientes da emoção humana, como a morte, a violência e a injustiça, foi utilizada com maestria pelo jornalismo brasileiro. Não houve melhor ou pior, todos foram extremamente profissionais, fazendo o que mais sabem fazer: Informar!

Se os jornalistas fossem comparados a outros profissionais no cumprimento do dever, o caso de Isabella Nardoni, menina morta em São Paulo tendo como principais suspeitos da autoria o pai e a madrasta, seria algo como:

Se os bombeiros disparassem jatos de água em uma chama extinta há dois meses; se os médicos numa UTI utilizassem o desfibrilador durante uma semana para tentar salvar um paciente já em decomposição; se um caçador abatesse uma ave e ao chegar ao solo desse mais cinqüenta tiros; se o juiz aplicasse a pena de morte dezessete vezes para o mesmo réu. Como se a cada passo dos jornalistas, houvesse um marcador de audiência, registrando a perplexidade de um público ávido para saber qual será o resultado final do caso, como se fosse o último capítulo da novela das oito.

Juízo de valor é loucura

Seja lá qual for a sua opinião sobre o caso da morte de Isabella, tenha em mente que eu gostaria de acrescentar algo que parece não despertar o interesse dos jornalistas e, por conseguinte, nem do público.

Segundo as estatísticas, acontecem pelo menos dois casos por dia de violência física seguida de morte ou de lesão corporal importante, praticada por pais contra crianças indefesas.

Que, de forma sutil e por isso mesmo desinteressante, do ponto de vista espetaculoso, crianças são jogadas em abrigos, são jogadas de ano em ano, sem saber ler e escrever, sem receber atendimento adequado de saúde, são vítimas de exploração sexual e por aí vai…

As emissoras chegaram a realizar algumas séries mostrando casos envolvendo crianças vitimadas pela violência social, mas nunca, nem de longe, comparado ao que poderíamos chamar de um ataque maciço ao caso Nardoni.

É como se estivéssemos assistindo a uma guerra tendo como alvo a família Nardoni e todos os recursos bélicos estivessem concentrados nesse único alvo. Essa técnica é devastadora, não deixa resíduo, se fosse um ataque militar não sobraria pedra sobre pedra.

Fazer juízo de valor sobre a atuação da imprensa é loucura, até porque, diante de tanto poder, quem poderia sobreviver.

A dengue no Rio

A mídia tem o poder de um governo, às vezes até mais, pois já derrubou governos também. É uma força descomunal que pode se voltar contra quem quiser. Faz qualquer coisa por audiência e, se for atacada de algum modo, esconde-se sob a proteção de seus direitos constitucionais, como se só os jornalistas tivessem direito a expressão.

E como usam esse poder? Essa a grande questão.

A todo o momento, crianças pedem ajuda, gritam por socorro e onde estão as equipes de reportagem para fazer, não um programa, mas uma série tão massificante como essa que envolveu o caso da menina morta em São Paulo? Estão perdendo o grande momento de expor as mazelas da sociedade, diante de um clima de comoção que poderia acordar a população e fazer com que eclodam movimentos sociais de revolta com esse estado de coisas que leva o país a descer ainda mais na escala do desenvolvimento social.

O caso da dengue no Rio – descaso do governo – deve ser mostrado com toda intensidade, incessantemente, explorando cada caso, visitando as famílias dos mortos, ouvindo sobre a qualidade de atendimento, não deixando que passe em branco perto de 70 mortes que significam a incompetência do poder público para resolver as questões básicas da população.

Ninguém morreu, não dá Ibope

Mandem jornalistas a todos os cantos da cidade do Rio e outras onde tiver casos de dengue, verifiquem o atendimento que está sendo dado aos doentes, cobrem do poder público, registrem a indignação das pessoas, massifiquem a notícia como fizeram no caso Nardoni.

Na educação, crianças passando de série, chegando aos níveis mais elevados semi-analfabetos. De quem é a culpa, quem são os responsáveis por esse despautério? Mandem jornalistas para as escolas, façam com empenho saber o que realmente acontece, comparem as escolas públicas e particulares, mostrem quanto custa cada criança numa escola pública e descobrirão verdades que deixarão o público abismado. Façam com a mesma competência, do modo espetaculoso, criem o impacto que só um bom jornalista sabe fazer, cada detalhe, cada situação é motivo para ser mostrado com todas as suas minúcias.

Os jornalista não deveriam sossegar enquanto houvessem crianças sendo jogadas – não importa se de uma janela de prédio, ou de um nível escolar para outro sem estar preparadas. A comoção deveria ser a mesma porque só assim teremos um país que se leva a sério e melhoraremos a qualidade de vida desse nosso povo…

Vamos parar com essa omissão que espera que algo aconteça para fazer o registro do acontecimento. Ninguém morreu, ninguém foi jogado do alto de um prédio, não há sangue, nem vestígios, então não há notícia, pois não dá Ibope. Quando acontecer algo de ‘interessante’, vocês nos avisam… Este comportamento é que deveria mudar na imprensa brasileira.

Matérias investigativas

Eu gostaria que o caso Nardoni fosse o estopim para uma revolução social em que o povo, unido, exigisse o fim das injustiças sociais e dos descasos dos governos. Por que não aproveitam o momento da comoção para enfatizar essas questões? Por que estão deixando passar um instante tão importante quanto esse?

Quanto tempo o Tim Lopes trabalhou matérias sobre a questão dos traficantes e qual a repercussão do seu trabalho para o grande público antes da sua morte?

Qual o interesse, por parte das emissoras, em dar ênfase às matérias investigativas do Tim? Para o grande público, Tim Lopes ficou conhecido nacionalmente depois de morrer, tragicamente, pelas mãos dos donos do morro… Foi preciso morrer para chamar a atenção da mídia para quem ele próprio trabalhava.

O pai da criança

É por essas e outras que me pergunto por que temos um jornalismo tão fraco e ineficaz, embora tão eficiente em fazer chover no molhado? Todos são competentes para trabalhar a informação de ontem, mas quantos sabem prever o que será notícia amanhã?

Desejo e espero, de todo o coração, que esse povo ainda descubra a sua dignidade e o sangue nas veias e se junte, aos milhares, para revolucionar e transformar esse caos social para termos, enfim, numa nação justa e digna dos filhos destes solo, que apesar de tudo ainda nos é tão gentil.

Eu queria muito ouvir o grito de ‘Justiça social, já’, ‘Justiça social, já’, ‘Pela melhoria da qualidade de vida’, ‘Por dignidade e respeito para todos os cidadãos brasileiros’!

Será que isso vai acontecer?

O que mais me impressionou no trabalho eficiente do jornalismo brasileiro foi a capacidade de tirar leite de pedra e ainda, como fez a líder de audiência, perguntar, ao vivo, para uma platéia boquiaberta, de onde teria vindo toda essa comoção em nível nacional?! Como se eles não soubessem quem é o pai dessa outra criança…

Quem dera esse ‘pai’ usasse o seu poder para impedir que milhares de outras crianças fossem jogadas, de modo flagrante, por esse Brasil afora.

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Pedagogo, São Paulo, SP