Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A aldeia global e o papel da mídia

Um dos pilares da democracia é a imprensa. Ela tem papel de destaque no desenvolvimento de qualquer economia, pendendo a ser livre e, principalmente, diversificada para que se possam ouvir as mais variadas correntes e com isso estabelecer um equilíbrio, em que a seriedade das propostas seja checada e a demagogia desmascarada. Quando este delicado equilíbrio é rompido o resultado é catastrófico. Como o que estamos vivendo.

Os profissionais da mídia estão descobrindo isso na pele porque a realidade hoje que se propaga é virtual, quando todos nós vivemos num mundo real em permanente choque com o anunciado pelos poderes públicos que investem fortunas em “comunicação”, para mascarar que não há um planejamento sério que vá redundar em resultados dignos. Mas como obrigá-los a serem produtivos se eles não são cobrados e ainda mantêm relações “supostamente” promíscuas com grupos que patrocinaram suas eleições?

É difícil trabalhar honestamente com bens públicos quando não se é fiscalizado pela mídia durante anos, a população é mantida apática quanto ao sistema decisório gerando uma impunidade que incentivou os partidos políticos a se aliarem a empresários para, novamente “supostamente”, assaltarem os cofres públicos como estamos observando, pasmos.

Averiguações abafadas

Uma das consequências disto para os profissionais de imprensa é a redução do mercado de trabalho e receitas redundantes desta alienação midiática que estamos sofrendo que se traduz numa imensa indiferença da população quanto ao seu futuro e, fundamentalmente, quanto aos valores éticos. Estamos condenando a população a desconhecer seus direitos e deveres para obter uma prática democrática sadia e seus benefícios. Temos de reagir e a mídia é o melhor canal para alavancar uma reação.

Como não nos manifestamos e a mídia, quando relata, não cobra providências, se tornou normal hoje em dia uma administração municipal deixar um hospital ruir para entregar emergencialmente obras de reforma no valor de R$ 16 milhões a um doador de campanha, sem licitação. Já a administração estadual do Rio dá exemplos sucessivos, sempre com a mesma empresa, e este é o RJ, um feudo repartido entre amigos, em que nós pagamos a conta, sorridentes. Não é possível que situações como estas continuem acontecendo na maior normalidade, pois essa impunidade estimula a ousadia a ser cada vez maior e, por isso, esse crescendo de escândalos, o que sempre acaba muito mal.

Fatos absurdamente desabonadores foram denunciados internacionalmente, somos motivos de pilhérias no exterior e nada se faz, porque a situação chegou num ponto tal, que determinados políticos não têm mais vergonha na cara, e mesmo com evidências fartas, os envolvidos tem a cara de pau de negarem tudo e só se afastarem quando seus próprios pares solicitam, mesmo assim com o intuito de se manter a boquinha do partido, com as tais porteiras fechadas. No Rio nada é investigado, mesmo quando aparecem sólidas denúncias com provas cabais. As averiguações são imediatamente abafadas, normalmente com mais investimentos na rubrica de comunicações como tem acontecido de forma recorrente. Mesmo em escândalos com mortes, como no caso do bondinho de Santa Tereza. O que foi apurado? Quais medidas foram tomadas? E olha que surgiram as mais díspares irregularidades!

Escândalo moral

Como é notório, a prefeitura do Rio de um ano para o outro aumentou seus gastos em comunicação em 9.000% e, uma matéria muito bem fundamentada sobre um escândalo nas ciclovias municipais, foi refeita na maior cara de pau, com testemunhos incríveis, desmentindo os anteriores. Mas, quando a relação é invertida, para fora do Rio, surpreendentemente são feitas reportagens que matam de inveja por não serem produzidas sobre nossos escândalos. Uma pena, não? Desperdiçar tanto talento e matéria-prima…

Dois bravos repórteres foram prospectar a Assembleia Legislativa do Rio e descobriram que é a campeã em gastos do Brasil, que esbanja R$ 1,9 milhão por dia útil. Ela não se ocupa da cidade, e sim, seus ocupantes usam a cidade descaradamente para se manterem no poder. Durante todo o exercício legislativo de 2010, sequer uma lei de relevância passara, entrementes eram concedidas uma homenagem a cada hora. Com o detalhe de que todas as exigências do executivo foram atendidas imediatamente quando sua função por definição é de ser um órgão legislativo da administração do município, uma assembleia que representa os interesses dos cidadãos aqui residentes, e que, portanto, deveria apresentar ou pelo menos tentar chegar a soluções para termos uma perspectiva crível de futuro pela frente, já que a cidade chegou ao fundo do poço exatamente por incúria administrativa.

Claro que esses dois repórteres não puderam apresentar a notícia assim, mas é isso que se lê nas entrelinhas. Voltamos ao tempo da ditadura, que temos que ler com cuidado e espremer para tirarmos a informação dos fatos apresentados! Ou comprar jornais paulistas.

É um escândalo moral sem precedentes e qual a reação a uma constatação dessas, que mostra que se depender dos nossos representantes legais, jamais teremos seriedade no trato da coisa pública e com isso direito a termos um futuro digno? O que fazer diante de uma comprovação dessas? Onde está a continuação dessa investigação jornalística que poderia render até um prêmio?

Por que não se revoltam?

É importante ressalvar que em 2010 deveria ter sido aprovado um plano diretor que aproveitasse o momento atual, único no mundo, quando serão investidos bilhões de reais que, se direcionados por um planejamento de curto, médio e longo prazos apoiados em uma âncora sólida como nossa vocação natural e em cima de metas críveis, poderiam apresentar um futuro promissor, gerando os tão necessários empregos sonhados pela população e as necessárias melhorias em infraestrutura e em qualidade de vida. Ao invés disso o que vemos são propostas infinitas de projetos sociais que criam currais eleitorais de onde emergirão nossos futuros “representantes”, perpetuando o clientelismo e esta elite que levou à falência os serviços públicos e privados do RJ, que a cada ano apresentam índices compatíveis com os dos estados mais atrasados da federação. É esse o futuro que você deseja, leitor-eleitor?

Motor econômico, a indústria imobiliária não é ajustada para crescer em longo prazo, como deveria ser já que a população das megalópoles cresce cada vez mais com a mecanização dos empregos no campo e a cada dia cresce também a demanda pela casa própria. A construção civil e o setor imobiliário, que podem absorver mão de obra mais facilmente através de cursos técnicos, avisa descaradamente que quer fazer “30 anos em 5”, o que nos dá uma pista sobre o pós-2016, quando vai chegar a conta dos investimentos em mobilidade urbana que todos os especialistas afirmam já ser obsoletos ao serem inaugurados e a mídia finge que não vê; dos investimentos olímpicos, verdadeiros elefantes brancos, ao que se somará o desemprego causado pela extinção de todas essas obras ao mesmo tempo. Imagine uma mídia investigativa nestes tópicos? Ou mesmo uma ação dos vereadores de oposição em cima de terreno tão fértil em maracutaias? Contratos que são assinados, para obras que se iniciam sem traçado definido. Não estamos nem falando em projeto executivo, coisa que agora se fala muito, mas que ninguém apresenta. Imaginem a festa de aditivos contratuais que não irão aparecer?

Imaginem vereadores indignados com provas na mão incitando a população, que já não aguenta mais tanta arbitrariedade, a reagir para não perder uma chance única no mundo para reinventar o Rio? Claro que a mídia seria obrigada a apoiar, mas onde estão esses vereadores? Por que não se revoltam com esta matéria que os detonou e não dão o troco? Onde está a mídia carioca que também será drasticamente afetada pelo pós-2016 e não se manifesta?

Muito descaramento

A grande verdade é que a mídia não quer investigar, nem nossos representantes eleitos suas “supostas” relações promíscuas com o setor predial, que mudam de acordo com a ação especulativa da vez, como por exemplo, no caso dos lançamentos imobiliários do Rio, que ao contrário do resto do Brasil, onde a atividade declinou há muito tempo, vendem tudo antes do lançamento, comportamento típico de especuladores que dão um sinal e pagam as primeiras parcelas para revender mais à frente com lucro. Como comprovam os registros que mostram que antes do imóvel ser entregue já passou por mais de dois nomes, prática que até o promissor mercado de SP abortou porque a demanda caiu muito.

Até onde a especulação esticará o preço dos imóveis no Rio, que estão entre os mais caros do mundo, sem suporte para isso em qualidade de vida e como ficará a situação dos inadimplentes e das empresas de engenharia se a situação mudar com a crise mundial, que até então não chegou aqui por conta dos atuais investimentos bilionários. Repare que no mercado de escritórios cada pesquisa aponta resultados conflitantes e ninguém investiga! Se houver uma mudança de humor no mercado muita gente inocente perderá muito. Investigar isso, nem pensar!

Por que após décadas deste comportamento ambíguo legislativo, totalmente desprovido de planejamento e respeito às instituições, de onde emergem leis suspeitíssimas que incrivelmente ninguém admite a paternidade, que incrivelmente não se investiga a autoria e que ao serem divulgadas e condenadas pela mídia são imediatamente arquivadas, só agora este tipo de conduta foi investigado? Qual o motivo de a mídia carioca não mobilizar a opinião pública no sentido de ser participativa quanto à verificação do que está sendo feito, por exemplo, com o dinheiro dos nossos impostos, que notoriamente escorre nos ralos da corrupção e, mesmo assim, anualmente as contas públicas são aprovadas nesta Assembleia Legislativa, com ressalvas por um tribunal de contas onde os diretores são nomeados pelos políticos que deveriam ser investigados? Ressalvas essas que são feitas, só para que, ao serem contestadas, os autores possam dizer: “Aprovei, mas com ressalvas e ninguém foi contra.” É muito descaramento, não, senhores?

Referência mundial

O assunto levantado por pesquisa que tomou dois meses desses dois jornalistas está sendo claramente manipulado para não provocar a ira de aliados e nem melindrar muito os vereadores de oposição abordados que tentam mesmo assim justificar o injustificável. Por que essa alienação total do legislativo e da mídia em relação ao destino da cidade? Para eles é ótimo, porque desta forma se reelegem a perder de vista, mesmo sem produzir nada que justifique isso a não ser um clientelismo barato e, muitas vezes, esperto. Contudo, é incrível a falta de percepção de determinados setores da inteligência que controlam a mídia ao perpetuar, compactuando, este tipo de legislativo, pois o futuro de todos, sem exceção, caminha para uma catástrofe. Ao se aumentar cada vez mais o abismo social, ao mesmo tempo em que se quebram os laços que unem uma sociedade produtiva para convertê-la em um feudo corrupto, tudo isso em uma aldeia global onde uma crise campeia, liquidando qualidade de vida e direitos adquiridos. Há um enorme risco disso tudo não acabar bem.

Não dá para entender o porquê de não se reinventar o Rio, como outros lugares que tinham problemas iguais ou piores do que os nossos fizeram, se podemos virar vanguarda e referência mundiais e nos eternizarmos assim. Com todo mundo ganhando, muito e em todos os sentidos. Acorda, Rio!

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[José Paulo Grasso é engenheiro e coordenador do Acorda Rio]