Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A infidelidade linguística

Ando por conta com essas pessoas de vocabulário curto, jornalistas principalmente, que pegam no ar uma expressão qualquer que acham bonitinha e não largam mais. Pelo menos até que surja a próxima novidade. Com isso, abandonam formas consagradas da língua portuguesa, de fácil compreensão, apenas porque gostam de novidades. Adoram o conúbio com palavras mais novas, um adultério rigorosamente improdutivo.

Tudo agora é “por conta de”, que significa apenas a responsabilidade pelas despesas num bar. Mas ficou assim: o trânsito tá ruim? É por conta de um acidente. O hospital fechou? Foi por conta da falta de verbas. Nada é devido a, nada é por causa de, nada decorre de nada, nada é função de algo. E a frase começa sempre com a expressão “na verdade”, como se a conversa até ali tivesse sido uma grande mentira.

Dia desses, eu ia caminhando ali pelo Caju, que não é exatamente um lugar que tenha algum atrativo para caminhantes, quando dei de cara com o verbo Morrer. Vinha cabisbaixo, carregando o peso do mundo nas costas. Não resisti. “Que é que tá havendo? Por que tão triste?” Levantou a cabeça, me olhou nos olhos por alguns segundos e explicou que estava triste porque ninguém mais fala nele. Mas como não falam em você? Você está presente na vida, perdão, na morte das pessoas todos os dias, ponderei. Mas o Morrer ponderou: “A morte continua existindo; o verbo morrer é que tá esquecido. Agora as pessoas falecem ou entram em óbito. Ninguém morre mais nesta terra.” Não tive tempo de me espantar com a explicação. Morrer virou-me as costas e se foi.

A aeronave já está em solo

Aquilo me tocou fundo. Fiquei penalizado. Prossegui na minha caminhada pensando na ingratidão das pessoas, que vivem com as palavras todo dia na ponta da língua, mas que de repente as desprezam, querem trair os seus hábitos de falar porque ouviram uma cotovia falar diferente em algum lugar. Percebi que há outros casos de infidelidade de linguagem que devem estar atormentando os esquecidos.

Lendo os jornais diariamente, tomo um susto a cada minuto. Dia desses li que um cara tinha se jogado no espelho d`água de Marapendi, na Barra da Tijuca. Mas como ele se jogou apenas no espelho d`água? E a lâmina d`água, que fica logo abaixo do espelho, e que ali perto da Praia dos Amores tem pelo menos uns três metros de profundidade? Ah, não sei. Deve ter ficado boiando.

Considero puro preconceito parar de chamar avião de avião e usar a palavra aeronave para nomear esses tubos pressurizados que nos levam pra Brasília e adjacências. Avião é auxiliar de traficante, ponderam, não pode ficar falando em avião por aí. Que nada. Caetano fala nos aviões sobre as cabeças. Aeronave? Fica parecendo programa espacial de Houston. Mas é isso que ouço sempre nos aeroportos quando nos querem enrolar porque o voo está atrasado: a aeronave que vai fazer o seu voo já está em solo. Em solo? Quando está voando é “em ar”?

“O trânsito segue parado”

Me ocorreu agora outro caso de infidelidade linguística inominável. A preposição “entre” foi substituída indelicada e indevidamente por outra preposição que tem outro significado, “dentre”. Mas quem está preocupado com isso? Os linguistas já explicaram que isso é a evolução natural da língua. Por que iria me preocupar com isso? Mas me preocupo. E me preocupo porque perdi todos os meus parentes. Assim, do nada. Viraram familiares. Mas cadê a parentada sua? Sumiu. Num golpe de mágica? Isso! Um golpe mortal – perdão, fatal. As vítimas agora são fatais, elas se envolviam em acidentes fatais, agora elas próprias são fatais. Encurtaram o caminho. A linguagem é mais direta. Oba-la-lá!

Mas que direta coisa nenhuma, alerta meu alter ego, um velho professor que de vez em quando me liga pra saber o significado de alguma expressão nova que ele ouviu por aí. Na semana passada – hoje dizem “última semana”, como se diz em inglês, e como se não houvesse possibilidade do advento de novas semanas à frente – ele queria saber o significado de uma expressão que ouvira no rádio: “O trânsito segue parado.” Pedi desculpas, disse que iria investigar e que retornaria a ligação assim que pudesse. Ainda não descobri. Quem sabe semana que vem, quando houver novas dúvidas a sobre a língua que se fala no meu país?

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[Romildo Guerrante é jornalista]