Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Como pressionar pelo marco regulatório

Enquanto o final de ano está (muito) próximo e avançam os tradicionais balanços sobre o período que chega ao fim, também transcorrem os planejamentos do que será feito de diferente nos 365 (ou 366) dias seguintes. Contabilizam-se prós e contras, lista-se o que não foi efetivamente colocado em prática e organizam-se estratégias para que não sejam cometidos os mesmos erros no novo período. Ante isso, a sociedade brasileira organizada pode e deve aproveitar esse momento para realizar sua autocrítica: é possível fazer mais pela implementação de um marco regulatório da comunicação no Brasil?

O governo Dilma Rousseff está prestes a completar seu primeiro aniversário e até o momento não demonstrou estar interessado em engajar-se no processo, atacando os problemas histórico-estruturais da área no país, sintetizados na concentração empresarial. Franklin Martins deixou a Secretaria da Comunicação ao fim do governo Luiz Inácio Lula da Silva com um anteprojeto pronto, mas o documento segue trancado em alguma gaveta do Palácio do Planalto. Com o governo mostrando que não pretende comprar essa briga, não está mais do que na hora da sociedade brasileira organizada empurrar o governo para a ação?

As empresas de radiodifusão fazem uma gritaria sem razão ante qualquer iniciativa de discussão do tema, como se, de fato, a liberdade de atuação viesse a ser prejudicada com a implantação de uma lei regulatória de suas atividades. Elas alegam que a liberdade de expressão estaria em risco, mas cabe perguntar: quem é que, de fato, enfrenta enormes empecilhos para manifestar-se, a empresa ou parcelas da população? Quem tem direito a voz e imagem nas transmissões de rádio e de televisão no Brasil são as concessionárias e os grupos que ela reconhece. Defender o pleno direito da sociedade brasileira à comunicação não é censura: ao contrário, é ampliar o número de vozes na arena midiática.

Indicativo de desenvolvimento

O que as emissoras defendem é a liberdade de empresa porque o cenário midiático tradicional no Brasil não oferece espaço à manifestação efetiva do cidadão. Ao ouvinte, telespectador e ao público em geral é oferecida uma participação acanhada em nome de uma suposta interatividade, que não passa de jogo de palavras e de estratégia de marketing – afinal, tal ferramenta resume-se à escolha da cor da gravata do apresentador; à resposta a enquetes rasas, com alternativas pré-selecionadas pelos editores; ou à definição do gol mais bonito da rodada, entre quatro ou cinco possibilidades construídas pelos programas.

Fazer a regulamentação nada tem a ver com autoritarismo, porque é do jogo democrático a existência de regras e sanções, de forma que a sociedade funcione e reproduza-se. Autoritarismo é rejeitar a possibilidade de regras – o sonho de todo candidato a déspota é governar sem a existência de limites ao seu poder. Defender a existência de um marco legal que normatize o funcionamento das mídias é defender a democracia. Sabe-se como, no Brasil, muitas empresas de comunicação conviveram muito bem com o poder autoritário durante o período em que a caserna dava as ordens e democracia era assunto proibido no país.

O que está em jogo é o controle unicamente privado da comunicação. Houve um tempo em que a capacidade técnica dos meios de comunicação era reconhecida como indicador da qualidade de vida de uma nação. Ter uma televisão com imagem apurada, estética ficcional elogiável e capacidade de cobertura nas produções jornalísticas era um indicativo de desenvolvimento econômico e social, um caminho que já foi superado. Boa qualidade técnica era quase um sinônimo de democracia consolidada. Até poderia ser, se a forma não fosse tão aplicada em esconder os vícios do conteúdo.

Decisão será da sociedade

Sabe-se que o mundo não funciona assim e que a Rede Globo, por exemplo, sendo favorecida pelo regime da ditadura militar, transformou-se na voz do poder. Não apenas ela, saliente-se, mas nenhuma outra organização teve tão facilitado seu projeto de construir uma rede nacional de TV, cuja programação obedecesse ao primado do lucro e das relações político-econômicas privilegiadas com o mercado e o Estado. Sem uma lei a lhe apontar limites, a empresa tem total liberdade de ação (que insiste em chamar de liberdade de expressão) para impor seus interesses privados, em detrimento da pluralidade e diversidade sociais.

Voltando ao balanço de final de ano e aos planos e metas de Ano Novo: se o governo não se mexe e o anteprojeto do governo anterior continua parado em uma gaveta, é o momento de a sociedade brasileira organizada mobilizar-se mais para implementar seus projetos. A partir de um documento, de um texto-base, de uma proposta de lei, será possível a discussão sobre pontos concretos, envolvendo propostas específicas de democratização da comunicação do país. Sensibilizar parlamentares requer, antes, a sensibilização da opinião pública, tarefa difícil pela baixíssima midiatização do tema.

Enquanto o pouco debate existente for realizado em cima de ideias abstratas e de grandes conceitos sem fundo real, as empresas de rádio e de comunicação pouco afeitas ao debate terão a vida facilitada para deturpar a discussão e manter o apego ao poder sem impedimentos, recorrendo a fontes confiáveis (aos seus interesses) para sustentar suas posições. Para evitar que isso ocorra, o governo da presidente Dilma Rousseff terá que colocar o seu anteprojeto na rua, de forma a servir de base para as discussões. Antes, porém, a sociedade brasileira terá que decidir se a comunicação faz parte de suas metas e planos de desenvolvimento para o próximo ano.

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[Valério Cruz Brittos e Luciano Gallas são, respectivamente, professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos e mestrando no mesmo programa]