Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Que falta fazem os iconoclastas…

Quando morrem personalidades, lembro de Juan José Sebreli, sociólogo argentino que visitou Porto Alegre tempos atrás. Na obra Comediantes e Mártires – Ensaio Contra os Mitos, ele questiona nomes até então intocáveis em seu país. Fiquei impressionado. Ele fala, sem papas na língua, de gente como Evita Perón, Che Guevara, Carlos Gardel e Maradona. Segundo ele, Eva Perón era uma mulher submissa; Gardel preferia cantar fora da Argentina; Guevara, um idiota político, e Diego Maradona, um fracasso que faz dinheiro… Acho saudável para a democracia a existência desse tipo de intelectual. Eles são necessários, todos os lados precisam ser analisados. Constato que isso não acontece entre nós, embora Nelson Rodrigues, dramaturgo, jornalista e escritor cultuado, tenha dito uma frase lapidar, que é repetida constantemente: “Toda a unanimidade é burra!”

Seria bom que surgisse, entre nós, gente como Sebreli – incômodo e inquieto, ele teve a coragem de questionar mitos, alguns ostentando uma unanimidade quase agressiva e arrogante. Há pouco, vivemos no Brasil a “era Lula”, um presidente que fez coisas, segundo ele mesmo, “nunca antes vistas neste país”… Questioná-lo em sua época sobre apoios que deu a grupos radicais, a políticos acusados de corrupção, a ajudas econômicas a países vizinhos perdulários e tantas outras coisas, era quase um suicídio político e intelectual. Qualquer cidadão poderia ter dito que essas ações eram discutíveis, que podiam ser melhoradas, ou canceladas, embora ele achasse impossível. Ficou difícil ser contrário a coisas que o presidente repetiu que eram inigualáveis, pois ninguém de bom senso se atreveu a questionar alguém que verbalizava tudo o que lhe vinha à cabeça, amparado por uma aprovação popular quase total…

Qualquer semelhança é inevitável

Essa unanimidade é perigosa. Já tivemos outras situações como essa na nossa história. Lembro Getúlio Vargas, Fernando Collor e até José Sarney no auge do “Plano Cruzado”, quando populares fechavam supermercados em nome do presidente… Não vou falar de outros nomes, pois estou longe de ser um Juan José Sebreli, mas pensadores como ele estão fazendo falta em nosso meio. Sebreli foi entrevistado por um jornal de Porto Alegre, na “Página de Cultura”; ele explicou suas ideias e a razão de nadar sempre contra a corrente. Perguntado, quando usou o termo “adoração”, se a massa santifica o mito, respondeu que sim, que é uma forma de religião. Que os líderes totalitários e autocráticos formam uma espécie de religião política. Que, quando morrem, como no caso de Che Guevara, por exemplo, as pessoas pedem até graças em seus túmulos, como acontece com Che, apesar dele ter sido ateu.

Perguntado se o fato dos ídolos serem figuras próximas e imperfeitas facilita a entronização no imaginário popular, disse que há um processo psicológico e contraditório, de identificação e projeção. Que a massa se identifica com esses ídolos na medida em que a maior parte deles foi muito pobre, ou teve uma infância infeliz, ou passou por dissabores, o que permite a identificação do povo com eles. Mas ao mesmo tempo, esses mitos, depois de passarem por todas essas infelicidades, misérias, humilhações, chegam ao ápice do prestígio, da fama, da glória, até mesmo do dinheiro. Aí se coloca a projeção. São dois movimentos que parecem contraditórios: de identificação com os aspectos dolorosos que podem ter vivido em algum momento de sua vida, e ao mesmo tempo por haverem triunfado, sobre eles acendido a luz deslumbrante – são os motivos pelos quais provocam essa adoração. O ídolo é alguém como nós, mas ao mesmo tempo é o que chegou aonde não pudemos chegar, encerrou ele.

Quando leio essas afirmações do sociólogo argentino, não consigo deixar de lembrar de Médici, Roberto Carlos, Millôr, Chico Anysio, Geisel, Brizola, Collor, ACM, Sarney, Lula, Vargas, Senna, Pelé, Zagalo, FHC, Ronaldo Nazário e tantos outros. Por favor, não estou fazendo nenhum tipo de comparação, apenas estou lembrando que eles estão, ou estiveram, no auge. Em suas épocas, poucos os criticavam e muitos aproveitavam suas popularidades. Não adianta dizer que o Médici censurava a imprensa. É verdade, mas ninguém obrigava o povo a aplaudi-lo no Maracanã lotado em dia de futebol, quando aparecia com um radinho colado no ouvido. Criticá-los hoje, derrubá-los de seus pedestais agora, é uma tarefa possível, exequível. Mas a hora de aparecerem os iconoclastas é quando os “mitos” estão no auge, alguns com uma popularidade quase atingindo a unanimidade e fazendo coisas que nunca antes foram vistas em certos países pelo mundo afora…

Qualquer semelhança não é coincidência – é inevitável…

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[Valacir Marques Gonçalves é policial federal, formado em Jornalismo e Direito]