Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Mordomo ou garoto de recados?

Não é tradição nem praxe da imprensa alemã o trato desrespeitoso e até mesmo difamador de políticos. O que existe é, sim, um jornalismo investigativo de competência ímpar e capaz de levar políticos ao ápice, como também fazê-los cair e, na pior das hipóteses, conduzi-los ao ostracismo total. Nicolas Sarkozy e Silvio Berlusconi foram durante muito tempo o foco preferido da imprensa germânica e eram tratados por ela de forma muito semelhante. Havia sempre um tantinho de escárnio implícito nas matérias, mas Sarkozy tem um álibi. É unha e carne com a mulher que, de fato, governa a Europa: Angela Merkel que, apelidada pela imprensa francesa de Madame Non, dita as regras político-financeiras, aponta e traça o caminho a ser seguindo, lidera com pulso forte horas de negociações, muitas delas durante toda a madrugada, seja para salvar a moeda (euro) ou para conseguir um compromisso do chamado meio-termo.

É ela, Merkel, que manda o premiê britânico James Cameron para escanteio e o faz, literalmente, desaparecer da lente das câmeras do cenário político europeu. Depois da era Tony Blair, a Inglaterra foi rebaixada ao papel de ponta no jogo político no velho continente. Nas fotos de grupo sempre tiradas ao final desses eventos acompanhados minuciosamente pela mídia, a maioria dos chefes de Estado tem função de coadjuvantes, na melhor das hipóteses. Quando a presidente Dilma Rousseff conversa com Barack Obama e coloca o dedo na cara dele e ele, por sua vez, muito gentleman, coloca delicadamente a mão no ombro com um sorriso gentil, tudo isso é minuciosamente analisado pela mídia. Como a cena de Sarkozy cumprimentando todos os membros da mesa, na convenção de Bruxelas, no fim do ano passado, e quando passou por Cameron o ignorou por completo. No New York Times, o vídeo foi o mais visto durante dias.

“O sr. acabou de perder a chance de ficar calado”

Nicolas Sarkozy, sempre fiel seguidor da linha dura de Angela Merkel, conta com a inteira lealdade e cumplicidade recentemente ratificada, quando a chanceler se recusou a receber o candidato do Partido Socialista, François Hollande, durante sua campanha. Perguntada pela imprensa o porquê, ela, como sempre, respondeu curto e vago: “Independente do resultado das eleições presidenciais, a Alemanha continuará o trabalho de parceria de confiança com a França”. Exímia em mexer os pauzinhos na encolha, vazou na imprensa a informação que Merkel teria “combinado” com outros chefes de Estado europeus para também não receberem o candidato francês.

As inúmeras vindas de Sarkozy à capital alemã para discutir – ou melhor, concordar – com Angela Merkel são de caráter simbólico. Essas trocas de informações e planos poderiam ser muito bem feitas por conferência de telefone. Estando ao lado da mulher firme em momentos de crise, Sarkozy somava pontos em casa, principalmente em período de campanha.

Enquanto a maioria das emissoras brasileiras ainda continua teimando no foco jornalístico e obsoleto Londres-Paris, é Angela Merkel, no centro de Berlim, que tem a faca e o queijo na mão. Em uma coletiva de imprensa, Merkel respondia a um jornalista longamente. Quando chegou a vez, do presidente francês, ele só disse: “Genau” (exatamente, em alemão). O sorriso de satisfação de Angela Merkel de quem acabou de ser ratificada como quem manda na casa, e isso ainda frente à imprensa internacional, foi de imediato acompanhado por uma expressão de surpresa.

Com fama de ser rabugento e encrenqueiro, como no episódio com o premiê James Cameron, quando, frente a toda a cúpula de chefes de Estado em Bruxelas, ele esculhambou: “O senhor acabou de perder a chance de ficar calado. Estamos fartos de ser permanentemente criticados pelo senhor, sempre dando palpite sobre o que devemos fazer. O senhor odeia o euro, mas não deixa de ficar dando palpites nas nossas reuniões”.

Pouco espaço para as eleições francesas

Outro episódio histórico e perpetuado pela imprensa internacional foi a coletiva de imprensa de Sarkozy no contexto do encontro do G8, em 2007, na cidade de Heligendamm, no norte da Alemanha. Chegando mais de meia hora atrasado à entrevista, balbuciou de forma confusa frente a toda a imprensa internacional: “O meu atraso… se deve ao meu encontro com (pausa)… monsieur Putin”, dando um sorriso de quem exagerou na vodca.

Depois desse mico, a imagem de Sarkozy na imprensa foi sempre acompanhada de um toque de sarcasmo. O ápice de uma dramaturgia que gera vergonha alheia é a paródia do programa cult de TV Dinner for one, na época do fim de ano. O programa mostra um mordomo, no melhor estilo inglês, servindo a sua patroa sentada sozinha à mesa, e foi adaptado, com o respectivo roteiro, para Merkel e Sarkozy. Alfinetadas para Berlusconi, mesmo depois de sua saída do cargo, também não faltaram.

Nesses dias de eleição na França, os jornais franceses e alemães estão repletos de depoimentos de eleitores dizendo se sentirem “roubados” por Sarkozy no contexto da crise financeira. A TV alemã estatal Phoenix cobriu durante várias horas no domingo (22/4) o primeiro turno da eleição num país dividido entre o socialismo de esquerda e a extrema-direita do partido Front Nacional. Depoimentos de eleitores das mais diferentes regiões e classes sociais mostram nitidamente o esgotamento da paciência com esse líder de fama de encrenqueiro e pavio curto. Já na mídia privada na Alemanha, o Grande Prêmio de Fórmula 1 em Bahrein foi a parte do leão das matérias. As eleições francesas, que o candidato François Hollande promete serem “uma mudança de rumo no continente europeu”, obtiveram pouquíssimo espaço.

Lema da campanha não colou

Em sua trilha final de campanha, Sarkozy pleiteou a reintrodução de controle nas fronteiras da Europa por um período de 30 dias e foi apoiado pelo braço direito de Angela Merkel, o chefe da fração do CDU (União Democrática Cristã). Políticos aliados e adversários da chanceler a acusaram de quebrar o Acordo de Schengen, conquista histórica para o continente, pura e simplesmente servindo de cabo eleitoral para Sarkozy. Jornais franceses anunciaram na noite de domingo (22/4) que, para o segundo turno, Sarkozy fará uso de mais temas populistas, como o controle da imigração e o questionamento do Acordo de Schengen como um todo, para tentar angariar votos dos eleitores do Front National. A vitória do candidato Hollande no primeiro turno não é devido ao programa do partido, e sim ao cunho pessoal, sem falar na simpatia que goza na mídia, pelo seu jeito simples e direto.

Sarkozy não conseguiu se livrar da imagem de defensor dos ricos e nem daquele que vai com a onda, um garoto de recados. Manchetes dos jornais franceses e alemães das últimas semanas não deixam quaisquer dúvidas de que a paciência dos franceses com o “encrenqueiro Sarkozy” chegou ao fim. O lema de sua campanha, La France forte, exibido a cores em imensos outdoors nos cantos de maior prestígio em Paris, não colou.

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[Fátima Lacerda é formada em Letras, RJ, e gestão cultural em Berlim, onde está radicada desde 1988]