Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O olhar inédito de Berzin

Em 1927, aos 24 anos, desembarcou do navio Attika em Belém do Pará o jovem Alexandre Behrsing, cidadão da Letônia, destinado a trabalhar na casa fotográfica do italiano Filippo Fidanza. Mas o ambicioso rapaz tinha outros planos e, um ano depois, estabeleceu-se no Recife com a ideia de abrir o seu próprio estúdio.

No Recife, os cidadãos da metrópole emergente o chamariam de Berzin, para facilitar a pronúncia (ou simplesmente Galego, por causa dos olhos claros e o cabelo liso). Em 51 anos de atividade no Recife, onde morreria, Alexandre Berzin (1903-1979) deixou um legado fotográfico tão relevante quanto o de um Pierre Verger, pela investigação cultural e antropológica (Verger também fotografou o Recife no mesmo período, especialmente em 1947), mas sua obra estava praticamente desconhecida. Até agora. O lançamento, esta noite, no Museu da Cidade do Recife (Forte das Cinco Pontas), do livro O Álbum de Berzin, de Fabiana Bruce da Silva (Cepe Editora, 251 páginas, R$ 60), vai causar certo frisson entre os observadores da arte de fotografar.

Por meio da fotografia, continuamos vivos depois de mortos, dizia Berzin. A organizadora do livro, Fabiana Bruce da Silva, reconhece nas fotos de Berzin uma erudição sofisticada, que a leva a citar Marc Ferrez, Auguste Stahl e Alberto Henschel em alguns dos trabalhos. Suas imagens, ele as colheu em um trabalho de campo, indo do Cais do Porto à zona rural de Pernambuco, e inventariam uma sociedade em mutação, uma arquitetura em ruínas e outra em construção, folguedos populares, maracatus, sombras de dançarinos de frevos, vaqueiros e caipiras, estivadores e pescadores, corsos carnavalescos e farras circenses. Foi ao mar e ao sertão.

Camera conscious

Fotografia de pressupostos modernos, a obra de Alexandre Berzin registrou também a tentativa europeia de se dotar Pernambuco de um senso anti-provinciano, com as novas concepções arquitetônicas que espocavam (exemplo da art déco) como a Art-Palácio, do arquiteto Rino Levi, até obras como o Cine-Teatro Santa Rosa, em Caruaru, em cuja foto de Berzin parece se reproduzir alguma parte de Miami Beach. Recife tinha 300 mil habitantes àquela altura (hoje, cerca de 4 milhões). “Seu vasto arquivo de fotografias, seus álbuns nos mostram um 'caçador de imagens' leal às coisas como elas insistiam em se apresentar”, escreve Fabiana Bruce da Silva.

Berzin teria estudado engenharia industrial e fotografia em Dresden, Alemanha, antes de vir para o Brasil. “É importante acentuar que, na visão da época em Pernambuco, visão que pode se estender inclusive até o tempo presente, o fotógrafo estaria mais próximo do operário de fábrica, entendido como mais um dos itens da engrenagem industrial do que do pensador e intelectual moderno.”

Mas Berzin não se enquadrava nessa perspectiva. Tinha como modelo a obra de Henri Cartier-Bresson (1908-2004), e conhecia também o trabalho de Alexander Rodchenko e André Kertèsz, além dos brasileiros Thomaz Farkas (1924-2011), German Lorca e Eduardo Salvatore (1914-2006). Seus contemporâneos o enquadraram na categoria de camera conscious, ou seja, aquele que tem consciência de sua arte e não se deixa dominar pelo aparelho, pela máquina.

Os segredos da natureza

Um de seus alunos em Pernambuco disse dele que foi “o profissional mais amador da fotografia no Recife”, o que ilustrava sua característica principal, a liberdade, a tentativa de não se deixar apreender em uma fórmula ou uma contingência profissional. “Uma boa fotografia não se faz por si, mas deve ser obtida com sentimento”, disse Berzin. Fabiana Bruce o considera o fotógrafo mais atuante na cidade do Recife em meados do século 20. Para a seleção do livro, escolheu um grupo de fotos que considera oferecer "elementos de acesso à memória da fotografia em Pernambuco". O material não destaca muitas fotos daquelas que traem uma grande interferência do artista na composição da fotografia; foca principalmente em sua capacidade de observação.

“A fotografia é como um tapete mágico. Leva-nos a toda hora a toda parte, aos pés do amigo ausente, ao ambiente das paisagens saudosas”, disse o fotógrafo Alexandre Berzin. “Este milagre dos homens foi conseguido à custa de muitos sacrifícios, de muitos desesperos, de muitas noites mal dormidas, de muitas horas de ansiosa expectativa. É sempre por esse preço que o homem arranca os segredos da natureza.”

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[Jotabê Medeiros é jornalista]