Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O dia em que driblei Otto

À comemoração do centenário de Nelson Rodrigues, Jorge Amado, Luiz Gonzaga e Mazzaropi, juntem-se, em 2012, os 90 anos a que chegaria Otto Lara Resende. Jornalista, contista, romancista, cronista, o festejado mineiro de São João del-Rei foi, principalmente, uma grande figura humana, um príncipe da Renascença, mestre em conquistar admiradores e fazer amigos. Com Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino, tornou ainda maior e mais puro o sentimento da fraterna cordialidade. Para Nelson Rodrigues, era obsessão – uma das tantas do dramaturgo, que se superou ao dar a uma peça o título de Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas Ordinária. Segundo ele, conversador assim tão brilhante deveria andar com um taquígrafo a tiracolo, para não perder uma só das frases que de sua boca jorravam como água da fonte…

E eram muitas, a pôr entre Oscar Wilde, Bernard Shaw e Millôr Fernandes o nome de Otto: “A grande contribuição de Minas Gerais para a cultura universal é a tocaia”; “O Brasil dribla os homens de boa-fé”; “Escrever bem é pensar bem”; “A Europa é uma burrice aparelhada de museus”; “Toda opressão é passageira, tanto quanto é permanente no Brasil”; “Política é a arte de meter a mão na merda”; “Toda leitura é um reencontro”; “O psicanalista é uma comadre bem paga” (esta, com certeza, para sacanear o amigo Hélio Pellegrino, referência da psicanálise brasileira); “No jornal, é melhor errar depressa do que acertar devagar…”; “De que adianta a posteridade, se lá estaremos mortos?”; “No Brasil, lei é como vacina: umas pegam, outras não”.

Sobre os irmãos Adolpho, Bóris e Arnaldo, para quem trabalhou na revista Manchete, disse: “Os Bloch eram um só torvelinho: uma família solidamente unida pela desunião”. Aos donos do poder, sabiamente aconselhava: “Dormir 24 horas em cima de um rompante é sempre bom, sobretudo para quem, sendo autoridade, pode fazer o mal com uma simples penada”. Quando soube que o jornalista Tarso de Castro morrera de cirrose hepática, aos 50 anos, escreveu: “A vida jogada fora, num gesto de desdém e rebeldia. Mas onde está a vida dos que a depositaram na poupança?”

Otto não economizou a sua, embora tenha vivido sempre com moderação e cuidado. Daí o espanto com que, em 1992, recebemos a notícia de que falecera aos 70 anos, depois de prosaica operação para reparar uma hérnia de disco. Asmático, não tinha maiores preocupações quanto à saúde, e respondia com bom humor sobre a doença que, até 1943, se escrevia asthma:

– Vez por outra a crise vem, mas depois da nova ortografia melhorei bastante…

Palavra cumprida

Conheci Otto Lara Resende em 1981, quando foi a Fortaleza, com a mulher, Helena, participar de um seminário de literatura. Ana Maria e eu recebemos o casal no aeroporto e o levamos ao hotel, na Praia de Iracema. Enquanto subiam as malas, caí na besteira de pedir-lhe que me autografasse um exemplar do Boca do Inferno, publicado pela José Olympio, que comprara havia pouco no Rio. A reação do escritor me surpreendeu:

– Onde é que você encontrou este livro?!

– Na própria editora, em balcão de ofertas logo na entrada da livraria…

– Que coisa! Eu não sabia que ainda estivesse à venda. Sou traumatizado com esses contos.

– Por quê?

– Porque a reação que desencadearam foi tamanha que jurei nunca mais publicá-los de novo. A única edição que saiu é esta aqui, de 1957.

– Mas as histórias são excelentes!

– Podem até ser, mas por causa delas me acusaram das piores coisas: de tarado, pornográfico, pedófilo… Apenas porque procurei mostrar o lado ruim que também há na criança, o gosto pelo sadismo, pela crueldade, a fascinação que têm pelo sexo… Esse livro só me trouxe aborrecimentos. Sabe o que eu faço com os exemplares que me dão para autografar?

– …

– Digo que estou apressado, pergunto se posso levar pra devolver depois e simplesmente dou fim ao volume. Só vou sossegar quando destruir o último…

Revelou a trama na maior tranquilidade, com o meu livrinho na mão… “Pronto, esse já era”, pensei, quando me ocorreu uma ideia que poderia evitar a consumação do crime:

– Otto, como nós vamos sair pra almoçar, me dá o livro que eu deixo ali na recepção. Na volta você pega…

Momentos depois, Ana Maria foi ao recepcionista e desempenhou direitinho o seu papel:

– Por favor, o escritor Otto Lara Resende pede o livro que está aí no escaninho do apartamento dele…

Mais do que depressa, correu até ao nosso carro e pôs o Boca do Inferno no porta-malas. À noite, mal nos viu, Otto foi dizendo:

– Aconteceu uma coisa muito estranha: alguém pegou o livro de vocês na portaria! O rapaz diz que foi uma moça alta, morena, assim como a Ana Maria…

Ao longo do jantar, de vez em quando voltava ao assunto, como se não estivéssemos acreditando na história:

– Como é que pode, Edmílson, um livro desaparecer assim?! Certamente alguém viu quando você o entregou, foi lá e passou a mão! Mas eu prometo que, chegando ao Rio, mandarei outro exemplar pra vocês.

Mal sabia que o nosso já estava em casa, de volta à estante… Dias depois, chega-nos pelo correio um volume em pagamento da promessa, com a dedicatória que pedíramos: “Para Ana Maria e Edmílson Caminha, cumprindo a palavra, este documento arqueológico. Mais o abraço do Otto Lara Resende”.

Assim aconteceu a história que bem se poderia chamar “De como dois exemplares do Boca do Inferno sobreviveram à perseguição do autor”…

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[Edmílson Caminha é jornalista e escritor]