Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Clodovil e eu, vítimas da piauí

Lançada em 2006, a piauí é uma boa revista, como a Brasileiros, que começou a circular no ano seguinte, e como foram a Senhor, que apareceu em 1959, e a Realidade, surgida em 1966. Espécie de The New Yorker brasileiro, o periódico de João Moreira Salles está entre o jornalismo e a literatura, com artigos longos e em geral bem escritos.

Publicada na edição de fevereiro deste ano, a matéria “Gritomudonomuro”, de Bernardo Esteves – sobre as inscrições em código com que uma artista plástica surpreende moradores e transeuntes da Zona Sul carioca –, é dos melhores textos saídos em nossa imprensa, nos últimos tempos. E duas longas entrevistas, pelo menos – com Nélson Jobim e com Ricardo Teixeira –, acabaram por fazê-los cair em desgraça, força que não costumam ter publicações mensais.

De São Paulo, por telefone, o repórter Bruno Moreschi propôs conversarmos pessoalmente, em Brasília, sobre minha experiência como redator de discursos na Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados. O perfil se adequava à seção “Esquina”, em que se contam histórias de pessoas originais pelo que são ou incomuns pelo que fazem. O bate-papo não deveria ser trabalhoso: respondo, quase sempre, às mesmas perguntas, quanto a pôr no papel o que deputados dizem na tribuna. Já em 1997, escrevera minhas “Impressões de um ghost writer”, publicadas no livro Inventário de Crônicas, com respostas prévias ao que me costumam perguntar…

Aos tantos que querem saber como trabalho para políticos com escolaridades tão diversas, esclareço:

“Além do perfil ideológico, da filiação partidária e das metas a que visa com o pronunciamento, importa saber o grau de instrução do orador. Quando me chegam solicitações de parlamentares menos conhecidos, consulto o Repertório biográfico da legislatura para ter ideia dos limites a que me sujeitar. Em um universo de 513 brasileiros, o estudo varia da pré-escola ao pós-doutorado – nem poderia ser diferente, pois esse é o país em que vivemos. Deve-se, portanto, adequar o texto, quanto ao fundo e à forma, aos conhecimentos daquele a quem se destina, até para não levá-lo a discorrer sobre o que não sabe. Suponhamos Guimarães Rosa e Garrincha – para cogitar apenas dos que já se foram – eleitos para a Câmara: se referências literárias e citações históricas ficariam bem na boca do primeiro, as falas do segundo teriam de ser despojadas e diretas, compatíveis com as poucas letras do jogador”.

Regras do jogo

Cuidei, como se nota, de não citar pessoas no exercício de mandatos, sequer vivas. Não foi, porém, o que li em “Anonimato público: os ghost writers da Câmara”, na piauí de novembro de 2008:

“Outra preocupação é saber para quem se escreve. No computador de Caminha, o currículo de Clodovil Hernandes, do PTC paulista, por exemplo, define-o como professor, comunicador, estilista, apresentador e cantor. Apesar do perfil multimídia, o redator conclui sem nenhuma maldade aparente: ‘Fica evidente que não dá para construir um discurso rebuscado para ele’”.

Simplesmente não acreditei, pois sequer mencionara Clodovil! Por e-mail, fiz chegar ao jornalista o protesto contra a falsa declaração, que me poderia ter causado problemas sérios, como servidor da Câmara que deve respeito funcional a todos os deputados – no mínimo um processo administrativo, que esperei do famoso parlamentar. A resposta de Bruno Moreschi, também por e-mail, foi ainda mais espantosa:

“Entendo suas críticas. Isso não me isenta de nenhuma culpa, mas editaram meu texto original, que não menciona Clodovil exatamente dessa forma. Contava que você navegava na internet diante do currículo do deputado e então comentou de forma genérica: ‘Para deputados com menos conhecimento acadêmico, fica evidente que não dá para construir um discurso rebuscado’. Lembro-me de que tive o cuidado de não ligar sua frase a nenhum deputado específico. Entretanto, como moro em São Paulo e a redação fica no Rio, não consegui ver o texto na sua última versão, apenas nas anteriores. De qualquer forma, receba minhas mais sinceras desculpas”.

Então é assim?! O editor altera o texto à revelia do autor?! Atribui declarações a quem não as deu?! Irresponsavelmente sujeita os entrevistados ao risco de um processo?! Clodovil morreu um ano depois, e só por milagre não tomou (e estaria coberto de razão) as providências cabíveis. Caso em que não me restaria escolha senão ir às últimas consequências, para que a piauí prestasse conta do que fez. Nem carta mandei à redação, pois na imprensa, de acordo com Zuenir Ventura, “o desmentido nunca tem a força do mentido”.

Continuo a ler a piauí, mas não como antes: o que me parece o testemunho isento do bom jornalista pode ser, afinal, a perigosa invenção do mau editor de texto. E me ponho a imaginar: se uma boa revista se presta ao que fez, coitado de quem estiver na mira da chamada “imprensa marrom”…

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[Edmílson Caminha é jornalista e escritor]