Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A censura voltou

Eu não tinha idade suficiente nos tempos da ditadura para perceber que, à minha volta, tudo que consumia na escola, nos jornais, no rádio e na TV passava pelo crivo prévio daqueles que se diziam sabedores do que seria ou não bom para mim. Mas aí eu cresci e o regime militar ficou para trás. Passei a escolher livremente minhas leituras e formei minhas próprias ideias. Algumas dessas ideias ofenderam e até constrangeram outras pessoas, da mesma forma que o pensamento de outras pessoas também me atingiu. E assim seguimos, usando nossa liberdade para construir nosso espírito crítico através do livre confronto de ideias, sem que devêssemos temer por nossa integridade física.

Justamente por ter me acostumado com a liberdade é que estranho ações como a do Instituto Advocacia Racial e Ambiental (Iara), que quer submeter obras de Monteiro Lobato a censura prévia, chegando a sugerir alterações na obra para torná-la politicamente correta. Pouco tempo depois desta discussão no STF não ter chegado a nenhum acordo, fico sabendo que a justiça brasileira determinou a retirada do YouTube e do Google do vídeo Inocência Islâmica por solicitação da UNI, União Nacional Islâmica. Vejam bem, não se trata de classificar o vídeo, mas sim, de impedir o acesso a ele.

Se não bastassem os islâmicos tentarem impor pelo terror a sua visão de mundo, agora a justiça brasileira determinou que o tal filminho, muito fajuto por sinal, seja banido. Traduzindo, a justiça aceitou o argumento da UNI que, como o disse Reinaldo Azevedo, colunista da Veja, “já viu o filme por nós todos e decidiu que não temos o direito de formular o nosso próprio juízo – inclusive constatar que é um lixo”.

A liberdade conduz ao progresso

Seguindo este critério néscio, sugiro que se proíbam as obras de Dante, Shakeapeare e até de José de Alencar, todos autores eivados de preconceitos. Por que não proibimos também os livros de Dan Brown ou Richard Dawkins, estes extremamente ofensivos à Igreja Católica? Ah! Já sei, talvez porque os católicos, ao contrário dos muçulmanos, não têm mais usado de violência primitiva contra quem os critica. Aliás, o mau-gosto musical me constrange muito severamente: talvez devamos proibir o funk e o rap com suas notadas apologias ao sexo e ao uso de drogas e álcool.

Cogitar tais excisões na liberdade de expressão é por si absurdo. Por mais que eu gostasse de ver a mixórdia musical de baixíssimo calibre banida para a fossa do esquecimento, estou disposto a conviver com ela em nome da liberdade de expressão. Basta que eu não ouça a música, não leia o livro ou não veja o filme que não me apeteçam. Sem, contudo, abrir mão da liberdade de criticá-los.

Concordo que o tal vídeo é ofensivo, não só à religião islâmica, mas também, e principalmente, ao bom gosto. Não discordo que Monteiro Lobato escreva como se escrevia na época, com o vocabulário repleto de racismo. Mas o que nos trouxe até aqui, evoluindo da ditadura à democracia, e o que pode nos manter rumo a uma democracia melhor, é justamente a liberdade. A contragosto do que apregoam alguns reacionários empoleirados no poder, não é a Ordem, como dita nossa bandeira, mas a liberdade que nos conduz ao progresso.

Amenidades climáticas e floreios

O pedágio cobrado pela liberdade é termos nossos valores expostos e questionados. A alternativa à falta de liberdade, nesse caso específico, é nos dobrarmos, sob a ameaça do terror, à vontade de alguns.

Pelo andar da carruagem e pelo ritmo das bestas que a conduzem, devemos temer o tempo próximo em que seremos proibidos de criticar os traficantes, pois teremos medo deles. Depois, ou, quem sabe, muito antes, nos será vedado o direito de denunciar a corrupção e talvez a imprensa deva, desde já, se calar totalmente porque não importa quem ela critica, sempre haverá alguém ofendido, justa ou injustamente. Restará ao jornalista, falar amenidades climáticas e dedicar floreios a artistas mequetrefes.

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[Marcos Pizzolatto é historiador]