Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

As vaquinhas de presépio

Como tantas coisas na vida, a mídia é um mal necessário. O que não significa que tenhamos que acatar passivamente tudo o que se lê na imprensa, o que se vê na telinha. Como já ensinava o filósofo grego Pirro de Élis três séculos antes de Cristo, nada como uma boa dose de ceticismo para fazer frente à grandiosa pantomina à qual estamos conectados, em que o imperativo da verdade nem sempre prevalece, escamoteada em meio a um inescrupuloso jogo de interesses que frequentemente nos reduz à condição de meros tolos e vaquinhas de presépio.

Onipresente e onisciente, é notório que a mídia herdou um poder quase ilimitado nas franjas dos avanços tecnológicos que materializaram a Aldeia Global do velho guru canadense Marshal McLuhan. Contexto em que reina não só como disseminadora de novos padrões comportamentais, como precursora de uma nova ordem social, contra a qual nem mesmo as crenças mais arraigadas e os regimes mais fechados estão imunes. Haja visto as recentes insurreições encetadas por povos secularmente subjugados por tiranos que já não conseguem mais impedir o intercâmbio de informações e conhecimento catapultados via internet & Cia.

Essa mídia do bem, por assim dizer, vem a ser a alavanca que tende a aproximar e integrar cada vez mais os povos, ainda que o sonhado cenário de harmonia e conciliação mundial esbarre em questões cruciais e de difícil solução, como a influência das antigas tradições e a própria ignorância e os preconceitos que ainda grassam mesmo nos países mais desenvolvidos. E essas são forças poderosas, como se sabe, pois vicejam e transitam indiferentemente a fatores econômicos e sociais, posto que remanescentes de diferenças étnicas e religiosas que se contrapõem aos extraordinários avanços em outras áreas. Ainda assim, é de esperar que a demonstração mais direta e explícita desse descompasso, proporcionada pelos meios de comunicação, mostre os caminhos para que o entendimento e o respeito entre os povos enfim se estabeleça.

Imprensa nunca foi apolítica ou isenta

Pelo sim, pelo não, é preciso estar ciente de que a liberdade exagerada também tem lá suas armadilhas, na forma dos mais variados abusos. Abusos que extrapolam principalmente quando não há regras definidas e sequer limites de bom tom, e que são impingidos a um público que acaba sendo presa fácil das versões capciosas, meias-verdades, propagandas enganosas. Cenário infelizmente predominante na chamada grande mídia tupiniquim.

Os exemplos são fartos e recorrentes e não se restringem apenas a casos de maior interesse publico, como, por exemplo, o julgamento dos indiciados no escândalo do mensalão – mesmo nos programas televisivos de entretenimento, o que impera é a vulgaridade e a empulhação. Não se trata simplesmente de contestar a mídia por divulgar e alardear os fatos e seus programas como bem lhe aprouver. O que chama a atenção e incomoda é o enfoque muitas vezes desvirtuado, a manipulação, sutil ou nem isso, dos noticiários; o vale-tudo despudorado em nome de audiência e faturamento. E isso se vislumbra mesmo quando a mídia faz aparentemente o certo, como o desmesurado destaque destinado às sessões do STF no caso do mensalão, em sintonia com o clamor público por um basta a corrupção. Afinal, nada justifica a exigência por uma condenação unânime, ou mais especificamente, que o ministro revisor Ricardo Lewandowski não possa divergir, como exigem certos setores da mídia.

Nunca é demais lembrar que seja na política como nas questões mais corriqueiras, não compete à mídia condenar ou absolver. Seu papel é informar, basilar, abastecer a opinião pública com a maior isenção possível, mas, com raríssimas exceções, não é isso o que acontece. Nem hoje, nem antigamente, posto que a imprensa de um modo geral nunca foi apolítica, apartidária, ou seja, isenta. Razão pela qual deve ser encarada sempre com reservas, desconfiança, ceticismo.

Desafio fajuto

Mesmo quando se trata de entretenimento, a mídia não brinca em serviço. O merchandising é a regra de ouro nesse manual de jornalismo pós-moderno que dispensa diploma, em que ética e zelo profissional são costumeiramente ignorados por apresentadores trasvestidos de garotos-propaganda, no comando de programas especializados em ludibriar o público, com enredos e produtos de credibilidade sem sempre confiáveis.

Como a farsa engendrada pelo Fantástico ao convidar (?) Ronaldo Nazário para participar do quadro “Medida Certa”, alardeada como um novo desafio de superação para o ex-fenômeno: queimar boa parte dos 118 quilos que acumulou logo no primeiro ano de aposentadoria da bola. Tudo muito legal e bonito, não fosse por um detalhezinho sorrateiramente sonegado do distinto público: o cachê de R$ 6 milhões embolsado por Ronaldo para se submeter ao tal desafio fajuto, no qual até a garbosa Veja embarcou solenemente, com direito a matéria de capa e tudo mais.

Esse é o ponto em que a mídia geralmente escorrega, mesmo quando bem intencionada, como é o caso do referido quadro ao enveredar por caminhos tortuosos para manter a atenção da patuleia. Não necessariamente mentindo na cara dura, mas omitindo, sonegando informações que possam atrapalhar seus objetivos. Em suma, quando tende a enfatizar só o que interessa, e maquiar o resto, impondo uma espécie de filtro depurativo que não difere muito das antigas técnicas de lavagem cerebral criadas para o controle das massas.

Segredos e mazelas

Exemplo emblemático nesse sentido foi o sintomático silêncio em torno do envolvimento do chefe da revista Veja em Brasília, Policarpo Jr., com o bicheiro Carlinhos Cachoeira, flagrado em grampos da Polícia Federal, e cuja convocação para depor na respectiva CPI, como também do patrão Roberto Civita, não teve qualquer repercussão na grande imprensa, a ponto de ser escanteada. Mutismo que também se estendeu às colunas políticas mais prestigiosas do país, entre as quais, como era de esperar, os pitbulls da casa, cujos blogs vetaram o assunto até mesmo nos comentários dos leitores. Honrosa exceção, CartaCapital fez o que pôde para chamar a atenção sobre o mau cheiro emanado desse, por si só, comprometedor pacto de silêncio, mas, como diz o ditado, nadou, nadou e acabou morrendo na praia, sem que as denúncias tivessem a devida repercussão.

Mas essa é apenas a ponta de um iceberg cujos segredos e mazelas, mesmo escamoteadas, omitidas, cedo ou tarde acabam vindo à tona, pois parafraseando Abraham Lincoln, um dos pais da democracia, pode-se enganar as vaquinhas de presépio por um bom tempo, mas não se pode enganar o rebanho indefinidamente.

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[Ivan Berger é jornalista, Santos, SP]