Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Eu queria ser Fernando Sabino…

Dizia ele: “No final tudo vai dar certo; se não der, é porque não chegou o final”. A vida deu certo para Fernando Sabino, que nos deixou há quase nove anos. Como romancista, cronista, cineasta, amante da vida e das mulheres e, principalmente, amigo de verdade de muita gente boa, ele foi inigualável. E o final parece que não vai chegar nunca para esse mineiro excepcional, pois continua lembrado por muita gente, com carinho e admiração – como é o meu caso.

Fui apenas leitor dele, é pena, pois queria ter sido seu amigo. Mais: queria ter conseguido ser ele próprio, como no famoso filme sobre John Malkovitch. Distâncias de idade e de geografia nos separaram, entretanto, mas tenho pelo menos duas histórias dele para contar, ocorridas, modéstia à parte, com a minha presença no cenário.

Belo Horizonte, início dos anos 60. Jânio Quadros, o breve, na presidência da República. Cuba, a ilha, marcando presença na imprensa diária, com a famosa crise dos mísseis. Grandes depósitos de bombas H felizmente nunca detonadas. Sabino participa de uma noite de autógrafos em BH. Eu, estudante do Colégio Estadual, já era fã apaixonado, como tantos de minha geração, por certo Encontro Marcado, mas não tinha dinheiro para comprar o livro que era lançado na ocasião. Mas fui lá assim mesmo, para ver meu ídolo. De última hora, muni-me de um livro da Editora do Autor, da qual Sabino era sócio, escrito por Jean-Paul Sartre, Furacão sobre Cuba. Nele havia, não me lembro mais, um pre(ou pos)fácio de Sabino. Achei que era o bastante para descolar um autógrafo também. E lá fui com alguns colegas de colégio e de simpatia por Cuba e por Sabino.

Parêntese: neste Furacão sobre Cuba, em que a revolução castrista recebeu de Sartre elogios rasgados, Sabino, em seu pequeno texto, sem deixar de lado os encômios, naturais e quase obrigatórios àquela ocasião, coloca seu pezinho atrás em relação ao futuro do movimento, temendo pela sua transformação em descarada ditadura, conforme exemplos já na época conhecidos. Estávamos, afinal, no auge da Cortina de Ferro.

No balcão

Como dizia, fui lá assim mesmo, munido apenas de algumas poucas páginas de Sabino, em busca de um autógrafo. Entrei na fila e, quando já chegava ao altar, melhor, à mesa onde o escritor de meus sonhos se esfalfava em dedicatórias, fui – sem muita cerimônia – barrado por um daqueles homens de preto conhecidos como leões de chácara. Tal sujeito quis me fazer ver, com a empáfia característica da espécie, que meu lugar não era ali, pois o livro que eu portava “não era de Fernando Sabino”. No meu ardor juvenil, contestei, resisti, o que fez o leão se enfurecer e tentar me empurrar para fora da fila. Quase ia conseguindo, mas fui salvo, de última hora, pelo próprio Sabino, que, mesmo diante da balbúrdia do salão e dos metros que nos separavam, percebeu o acontecido e me distinguiu com palavras que me marcaram para sempre: “Deixa o rapaz falar comigo, o livro também é meu”.

Foi assim que consegui cinco minutos de papo e um autógrafo carinhoso, gravado em mim como tatuagem por anos – até que Cuba perdeu o encanto e em uma de minhas muitas mudanças de cidade, Furacão sobre Cuba foi-se com o vento…

Um salto no tempo e estamos no final dos anos 80. Vou de férias ao Rio com meus filhos, alugo um apartamento na zona de fronteira entre Ipanema e Copacabana, para perfeito simbolismo, pertinho da residência de Carlos Drummond de Andrade, já falecido na ocasião.

Certa manhã, saio para comprar pão e frutas em um supermercado próximo e logo ali, na Rainha Elizabeth com Bulhões de Carvalho, quem vejo no boteco da esquina, tomando cafezinho e saboreando pão quente com manteiga, de pé, cotovelo no balcão, bem ao estilo carioca? Ninguém mais do que ele, o meu ídolo da juventude! Imediatamente, quis me aproximar, mas um pouco de timidez e o fato de estar o mesmo num bate-papo animado com o rapaz que lhe servia naquela hora me fizeram recuar. Acho que até pensei: “Deixa que eu pego ele na volta…” Malgrado meu, na volta a média com pão e manteiga já tinha sido sorvida e Sabino não estava mais ali. Que frustração…

Um epitáfio

Bem, eu falei que tinha duas histórias, mas devo corrigir: tinha uma história com ele e eu e outra, sinceramente, nem tanto… Depois, nunca mais, a não ser pelo contato próximo com o autor, tanta coisa eu lia de Sabino, mais a releitura sucessiva de O Encontro Marcado, que me marcou e continua me marcando vida a fora.

No momento, leio pela primeira vez as cartas trocadas entre Sabino e Clarice Lispector, me maravilho e penso: que canja a vida dá ao possibilitar que duas pessoas desse porte, dessa inteligência e sensibilidade, tenham sido contemporâneas e mais, amigos fraternos, almas gêmeas como dificilmente se vê. E que tenham deixado para a posteridade testemunhos como os que ora leio. Amavam-se secretamente ou eram apenas predestinados a algo que não faz parte do cotidiano dos demais mortais?

Para encerrar, outra frase cheia de espírito, daquelas que só Sabino era capaz de produzir, sugerindo um epitáfio para si: “Aqui jaz Fernando Sabino, que nasceu homem e morreu menino”. E copio, também, uma das despedidas epistolares de Fernando para Clarice: “E me apresso em colocar o ponto final, com um abraço de saudade”.