Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O filme e o Código de Ética

O filme americano Ace in the Hole, ou A Montanha dos Sete Abutres, foi produzido em 1951, quando, no Brasil, o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros nem sequer estava no plano da imaginação. Votado em Congresso, em 1987, o código passou por mudanças ao longo de sua existência e hoje propõe direitos e deveres da profissão, ou seja, maneiras de se realizar o que se entende por “bom” jornalismo.

O filme, premiado e mundialmente reconhecido por mostrar o papel da mídia manipuladora na figura de um jornalista desequilibrado, reproduz o que as escolas de jornalismo nas universidades e faculdades recriminam: a atuação descompromissada e inconsequente do jornalista. No enredo, Charles Tatum é um repórter famigerado, capaz de inventar e produzir fatos que possam valer histórias mirabolantes a fim de ganhar fama e aumentar as vendas dos jornais, incitando a curiosidade das pessoas. Cenas que mostram Tatum debochando da frase “Diga a Verdade”, afixada no jornal em que trabalha, são eficazes para que o telespectador reconheça a falta do senso “ético” do personagem.

Despedido de 11 jornais importantes dos Estados Unidos, Tatum tenta recuperar sua “credibilidade” em um pequeno jornal da cidade de Albuquerque, no Novo México (EUA). Entediado com a monotonia da pequena cidade, discute com seus colegas de redação sobre o provincianismo do lugar até que recebe uma pauta para escrever uma reportagem numa cidade próxima. A pauta transforma-se numa outra que estava fora dos planos: em vez de cobrir um evento de caça às cobras, Tatum descobre que, num povoado chamado Escudero, um homem está preso na mina da Montanha dos Sete Abutres, lugar que, segundo a crença dos indígenas, é “amaldiçoado”.

A maior “barriga”

A partir dessa tragédia, que não teria grande repercussão, o repórter, com sua habilidade de convencimento e persuasão, manipula os envolvidos e faz do fato um grande “circo”, prometendo trazer com a “notícia” uma multidão de curiosos para movimentar o comércio local e viabilizar a “indústria do entretenimento”, tão cara aos americanos. A promessa torna-se realidade: grandes jornais são atraídos pela notícia do homem preso na mina, “cercada de fantasmas” e mistérios. O fato atrai praticamente toda a grande imprensa dos EUA.

Tatum apropria-se do fato, uma vez que é a única pessoa a manter contato com o minerador soterrado. Quanto mais a notícia “rendia”, mais tempo o homem (Leo) ficava preso na mina. Finalmente, ocorre a tragédia: Leo morre por culpa do jornalista inescrupuloso. Do lado de fora, uma multidão se divertia com música, circo e um parque de diversões. Sentindo-se culpado, Tatum (o repórter) dá a notícia do falecimento. Todos voltam à “realidade” e saem do lugar que, em poucas horas, volta a ser vazio. Tatum, que conseguira um contrato milionário com um grande jornal americano, é despedido. Bêbado e ferido, volta a Albuquerque para dar “a grande notícia” que já não interessava a ninguém: ele fora o responsável pela morte do mineiro. Sem socorro, morre à míngua.

O filme traz o exemplo emblemático do jornalista antiético e da grande mídia interessada apenas em lucrar. O resultado do furo acaba, na maioria das vezes, em problemas e os prejudicados são os envolvidos. Depois de realizar o seu show, a mídia, ou o profissional, que manipula sem limites, sai de cena, deixando as “as cicatrizes” da irresponsabilidade social. No Brasil, o caso da Escola Base é exemplar neste tipo de questão, pois representa a maior “barriga” da imprensa brasileira. Depois de 19 anos, os responsáveis pela Escola Base, de educação infantil, ainda sofrem com as sequelas dos danos emocionais advindos das acusações falsas de toda a imprensa nacional.

Danos irreparáveis

A montanha dos sete abutres reproduz de maneira “caricatural”, mas perfeitamente plausível (talvez a realidade seja ainda mais fictícia) as falhas do jornalismo praticado sem ética, que está relacionado, também, como o filme mostra, ao profissional sem formação acadêmica, ao profissional experimentado apenas pelo mercado e, consequentemente, deformado por ter apenas a visão estreita de sua atividade como “vendedor de notícias”, em detrimento de sua função social de prestador de um serviço de interesse público.

O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros determina, no art.11 (Da responsabilidade profissional do jornalista), capítulo 3 – que o jornalista não pode divulgar informações: 1) visando o interesse pessoal ou buscando vantagem econômica 2) de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em cobertura de crimes e acidentes 3) obtidas de maneira inadequada, por exemplo, com o uso de identidades falsas, câmeras escondidas ou microfones ocultos, salvo em casos de incontestável interesse público e quando esgotadas todas as outras possibilidades de apuração.

A imprensa brasileira tem uma enorme lacuna a ser preenchida no quesito ética. Ao se analisar o Código de Ética, vê-se que existe uma grande diferença entre o que não é permitido e o que é praticado no dia a dia. A diferençatorna-se ainda maior quando se percebe que filmes produzidos na metade do século passado mostram,em sua temática, os problemas gerados com a falta de preparação e qualificação profissional do jornalista, fato corriqueiro ainda hoje. O agravante fica por conta da má utilização das novas tecnologias que, usadas por profissionais despreparados ou da imprensa marrom, produzem e distribuem, mais rapidamente, informações que podem gerar danos irreparáveis a pessoas ou instituições.

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Paula Pires é jornalista, Teresina, PI