Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O jornalista e o patrão

Alguém, em sã consciência, pode acreditar que a redação do jornal O Liberal tenha decidido, por iniciativa própria, passar a fazer sucessivas reportagens denunciando irregularidades e ilegalidades praticadas pela Construtora Freire Mello em uma grande área às proximidades do aeroporto de Val-de-Cans [em Belém, PA], só tendo consultado depois Romulo Maiorana Júnior, denunciado pelo Ministério Público Federal como o responsável por essa campanha contra a empresa?

Só mesmo o editor chefe do jornal, Lázaro Cardoso de Moraes. Chamado para depor na Polícia Federal, por sua condição de responsável legal pelo conteúdo jornalístico da publicação, Lázaro contou essa história inacreditável.

Em seu testemunho na PF ele informou “que as matérias relacionadas à Construtora Freire Mello começaram quando o jornal passou a receber diversos telefonemas sobre os transtornos causados pelas obras do Shopping Grão Pará, cuja principal reclamação era o desmatamento da área. Afirma que a matéria foi levada ao conhecimento dos diretores que não se opuseram à publicação:

“(…) em razão da relevância econômica dos grupos empresariais envolvidos na matéria, o conteúdo da reportagem foi levado ao conhecimento dos diretores do jornal, que não opuseram qualquer restrição à publicação em razão do interesse público envolvido”.

Manifestando-se sobre esse depoimento, a procuradora Maria Clara Noleto disse em sua denúncia que as matérias sucessivas teriam relevância jornalística porque a repercussão da primeira matéria levou à atuação de entidades como Assembleia Legislativa, Câmara Municipal, Ordem dos Advogados do Brasil — Seção Pará e Ministério Público do Estado.

Destacou o trecho do depoimento em que Lázaro diz estar subordinado às diretorias e aos proprietários do jornal, “não tendo comentado com Romulo Maiorana Júnior sobre as matérias envolvendo a Construtora Freire Mello, negando haver perseguição à referida ‘‘construtora”.

“Com o intuito de desvencilhar as reportagens do ideal de perseguição”, o editor chefe pediu a juntada de uma reportagem, que, segundo a procuradora, a uma simples leitura, “apenas corrobora a perseguição, pois faz alusão aos transtornos que os moradores do conjunto Bela Vista tiveram quando houve a implementação da Avenida Centenário, fato diverso das variadas reportagens agressivas e difamatórias cujo alvo era a Construtora Freire Mello”.

Causa pública

A fim de reforçar esse seu entendimento a procuradora juntou duas reportagens do Amazônia Jornal e O Liberal, “em que não há qualquer alusão à ilegalidade dos empreendimentos hoje tão combatidos. Há, nestas, apenas conteúdo informativo, característico do jornalismo que sempre deveria existir em nosso Estado”.

E arremata:

“Ora, por que, naquele tempo, não se verificou a aquisição do terreno? Por que, naquele tempo, não houve qualquer alerta sobre eventuais irregularidades? Isso apenas corrobora o fato de que, naquela época, não havia qualquer interesse em jogo. Agora, quando interesses escusos estão por de trás da notícia, aparecem as “denúncias” as quais visaram tão somente pressionar a Auditora Cláudia Mello a conceder decisão favorável ao denunciado, sob pena de seu marido, e ela, por via reflexa, amargar prejuízos empresariais”.

No trecho seguinte da reportagem a procuradora diz estar claro “que não foi conferido à Construtora o direito de se manifestar sobre os fatos, antes mesmo da veiculação das matérias jornalísticas, a fim de que se procedesse à apuração jornalística idônea e proba, realidade que está muito longe de ser alcançada no território paraense”. E cita outro trecho do depoimento de Lázaro:

“Que perguntado se a Freire Mello foi procurada para se manifestar sobre as várias reportagens que envolvia seu nome e se tem conhecimento ou por ter sido procurado pessoalmente, ou por diretores, de que houve reclamação da construtora contra o conteúdo da matéria, respondeu que: ‘‘desconhece qualquer reclamação dos responsáveis pela Freire Mello contra as reportagens e quanto oferecer oportunidade durante as reportagens para que a Freire Mello s (sic) se manifestasse jornalisticamente, respondeu que foi informado, pela produção do jornal, que a construtora não iria se manifestar e, segundo a produção, o Ministério Público argumentou que, por se tratar de causa pública, já que havia um processo de investigação correndo, ficaria a cargo da própria construtora se manifestasse ou não; Que pelo que se recorda não foi registrado na matéria do dia dez que fora dado oportunidade à Construtora Freire Mello se manifestar”.

Uma lição

Por tudo isso, a procuradora considera demonstrado que o jornalista “tinha consciência de que não teria sido oportunizado à empresa atacada o direito de resposta ou mesmo de se manifestar acerca das acusações, comprovando que aderiu à conduta criminosa. Conforme largamente demonstrado, as reportagens analisadas estavam desvinculadas de seus conteúdos jornalísticos, ou seja, não estavam sendo utilizadas para levar informação e conhecimento à sociedade, mas sendo utilizadas para pressionar – ameaçar – a Auditora Fiscal (pois a Construtora Freire Mello é de propriedade de seu esposo) a não criar empecilhos no processo administrativo relativo à aeronave da empresa Orm Air Táxi Aéreo, empresa integrante das Organizações Rômulo Maiorana, cujo proprietário (Romulo Maiorana Júnior) é Presidente Executivo do jornal O Liberal”.

Fica a lição para os jornalistas na sua relação com seus patrões.

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Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)