Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Elas não dançam conforme a música

Na segunda semana de fevereiro de 2004, entrou em cartaz no circuito cinematográfico brasileiro o filme Escola do rock, produção dos EUA protagonizada pelo ator Jack Black, que fez participação no filme cult Alta fidelidade. Segundo a crítica especializada, Escola do rock tem os mesmos elementos que já se tornaram convencionais em filmes de rock, só que eles são explorados com inteligência e criatividade.

O filme procura apresentar às gerações recentes os conceitos de rock que, por incrível que pareça, já estão começando a desaparecer. E, no Brasil, um país bastante vulnerável aos equívocos e desleixos provocados pelo ideal da massificação, a cultura rock na prática estava se transformando num gueto de iniciados, dando lugar a uma ‘cultura rock’ que nada tem a ver com a essência original, embora tenha tudo a ver com clichês estereotipados em relação aos roqueiros e aos rebeldes em geral.

Embora o filme não tenha como tema o rádio, é neste meio de comunicação que o rock teve, ao lado da imprensa musical e da televisão, seu processo acelerado de diluição e estereotipação no Brasil. O cenário de rádios de rock brasileiras, brilhantemente iniciado nos anos 80, caminhou para um rumo de qualidade duvidosa e pode-se dizer que o radialismo rock brasileiro atravessa uma grave crise que só começa a ser solucionada com a emissora paulistana Brasil 2000 FM, que aos poucos resgata a essência original do radialismo rock.

Nos anos 80, a Rádio Fluminense FM, de Niterói (RJ), atualizou e divulgou o formato que era explorado na década anterior, sem alarde mas com expressiva popularidade, o formato de rádio de rock desenvolvido no Rio de Janeiro pelas rádios Federal AM e Eldorado FM (Eldo Pop) e em São Paulo pela Excelsior FM (cujo lema era ‘A máquina do som’). Com a Fluminense, celebrizada pelo apelido de ‘Maldita’, vieram outras discípulas: 97 FM (Santo André, ABC Paulista), Estação Primeira (Curitiba) e Ipanema FM (Porto Alegre), das quais só resta a última no perfil rock.

Lançada em março de 1982, a Fluminense FM teve como missão se opor aos mandamentos vigentes no radialismo jovem naquela época. A maioria das FMs jovens tinha locutores bonitões, com jeitão engraçadinho e fala extremamente animada, acelerada e afetada, com entonações forçadas e muitas gracinhas faladas. Em certos casos, os locutores apelavam para o pedantismo e veiculavam informações erradas sobre as músicas. E o repertório musical era tão limitado e repetitivo que num mesmo minuto duas ou três rádios tocavam exatamente a mesma música, embora não de forma simultânea (por exemplo, uma FM tocava a primeira estrofe, a outra já estava na segunda). As rádios em geral tocavam uma média de 45 a 60 músicas ao dia, num período que só se renovava em média de quatro meses.

Ruptura com o padrão pop

A Fluminense FM, pela dedicada coordenação do jornalista Luiz Antônio Mello, hoje colunista do jornal niteroiense Lig Jornal, rompeu com esse esquema usando locutores de fala mais sóbria e tranqüila, sem gírias e sem fala em cima das músicas, e um repertório musical de rock, blues e tendências híbridas de rock com MPB (incluindo os chamados ‘malditos’), jazz, reggae e eletrônico sem quantidade limitada de músicas, sem qualquer opção aos mesmos hits, mesmo roqueiros. Na programação normal, para se ter uma idéia, poderiam aparecer músicas de bandas que nunca seriam lançadas no Brasil sequer por selos independentes (uma banda como a inglesa Weather Prophets, por exemplo, que nem pela gravadora Stiletto chegou a ser lançada), além de lados B de compactos, gravações demo, músicas instrumentais e canções longas de rock progressivo.

O formato começou a ser diluído em 1988, com a 89 FM de São Paulo. A emissora faz parte de um segundo escalão de rádios de rock, e começou corretamente em dezembro de 1985, embora não tão ousada como as emissoras originais, ao contrário que muitos dizem. A emissora havia surgido misturando ex-locutores da Fluminense FM de Niterói (que passavam a trabalhar em São Paulo) e ex-profissionais da Rádio Cidade, do mesmo grupo empresarial da 89, que tem o Jornal do Brasil como acionista principal.

A Rádio Cidade, uma rede de rádios surgida a partir de 1977, no Rio de Janeiro (mas sem o esquema de rede via satélite, que só surgiu 15 anos depois (a ‘rede’, no caso, se caracterizava apenas pelo sistema de padrão profissional, mas todas as afiliadas tinham programação regional), tornou-se paradigma de hit-parade no rádio brasileiro. Pioneira na divulgação da disco music, a Rádio Cidade do Rio de Janeiro teve seu auge em 1983, quando sua rede já reunia dezenas de afiliadas por todo o país, inclusive a de São Paulo.

Aí surgiu o erro da 89 FM. Um erro que fez a tão proclamada ‘A Rádio Rock’ ter um destino menos doloroso, mas ainda assim não menos ingrato, diante das extintas rádios de rock originais. Se muitos atribuem a decadência da Fluminense FM à obsessão de lucro imediato do atual empresário Alexandre Torres (neto do jornalista Alberto Francisco Torres que, apesar de aparentemente mais conservador que o neto, foi bem mais receptivo e aberto às ousadias originais da Fluminense FM), a decadência da 89 FM, já explícita no início dos anos 90, se deve ao que Luiz Antônio Mello classifica como ‘namoricos com o pop’. Ao contrário da Fluminense, a 89 FM sempre teve um flerte com a MTV, rede de televisão ainda inédita no Brasil naqueles idos de 1986, quando a 89 FM já repercutia sobre a opinião pública. E, desde quando surgiu, a 89 FM aproveitou locutores com experiência em rádios pop, enquanto a Fluminense FM de sua fase áurea estabelecia uma ruptura com o padrão pop, mantendo locutores sóbrios com algum entendimento básico de rock.

Conhecedores x ‘profissionais

Por isso mesmo, a 89 FM resgatou, aos poucos, os elementos convencionais de radialismo pop renegados pelas rádios de rock originais. Desde o início sendo muito moderada para os padrões de rádio alternativa ideais, se pudéssemos fazer uma comparação aproximada entre o marxismo e o radialismo rock, poderíamos dizer que a Fluminense FM de 1982 correspondia ao marxismo original, do seu fundador Karl Marx, enquanto a 89 FM de 1985-1987 correspondia à já moderadíssima, embora generosa, Perestroika do então presidente russo Mikhail Gorbachev.

Se nos primórdios é exagerado dizer que a 89 FM de São Paulo tocava bandas de garagem toda hora – ela se concentrava no tecnopop britânico, nos clássicos do rock, no rock nacional mainstream e só abria brechas para alguns nomes emergentes que, se estrangeiros, tinham garantia de lançamento no Brasil, e, se nacionais, estavam com alguma demo ou disco independente em andamento de divulgação –, a partir dos anos 90 a emissora se tornou, na prática, uma rádio pop como as outras, só que com ‘vitrolão’ (ou seja, o repertório de músicas tocadas) fixado no rock. O repertório continua o mesmo, mas enquanto na programação normal já apareciam locutores que eram arremedos dos radialistas popularescos ou pop que já faziam sucesso em rádios como Cidade, Bandeirantes e Jovem Pan 2, em programas específicos ainda apareciam os conhecedores de rock, como Fábio Massari, no seu programa Rock Report. Neste programa, Massari tocava músicas antigas de nomes pouco massificados (como Frank Zappa) e outras de bandas emergentes ou até mesmo veteranas, mas sem alguma fama entre o público médio do país (como por exemplo o veterano grupo inglês Wire), além de fazer entrevistas com músicos nacionais e estrangeiros e tocar também bandas nacionais.

Desde 1988, a 89 FM começou a se transformar numa arena onde conhecedores de rock disputavam lugar com os chamados ‘profissionais de rock’, gente que não entende coisa alguma do gênero e, como radialistas, têm formação mais próxima de segmentos como dance music e popularesco. Os ‘profissionais de rock’ são considerados, nos bastidores do rádio, como aventureiros que confiam no seu suposto ecletismo cultural, e seu envolvimento com rock é quase sempre limitado à sua rotina profissional. Fora desta rotina, muitos desses radialistas fogem do rock como, na crendice popular, o diabo foge da cruz.

Rock barulhento

O modismo do grunge, rock pesado de Seattle (EUA) equivocadamente exaltado pela imprensa musical do mundo inteiro, prejudicou a cultura rock em geral. De qualidade musical mediana, o cenário de rock de Seattle de 1991 era ainda prematuro, suas bandas mal estavam desenvolvendo sua identidade musical e o som ainda era bruto, pouco melodioso, mais parecendo ainda com os primeiros ensaios de garagem das bandas iniciantes.

Mesmo assim, o grunge foi pego de surpresa com a massificação exagerada que teve, que lançou muitos mitos a respeito desse cenário de rock que não correspondiam à realidade. O resultado não poderia ser mais frustrante, apesar do deslumbramento dos críticos musicais, que até hoje falam do gênero como se fosse ‘revolucionário’. A pressão do sucesso foi nociva para todos os grupos musicais, cuja intenção era apenas fazer um som para seus fãs do estado de Washington (não confundir com a cidade de Washington, capital do Distrito de Colúmbia, o Distrito Federal dos EUA), onde fica Seattle. Dos quatro grupos de maior sucesso do grunge, dois tiveram fim trágico, Nirvana e Alice In Chains. Outro terminou entediado com o sucesso, o Soundgarden. Restou o Pearl Jam, que hoje desenvolve seu crossover entre o hard rock do Led Zeppelin e o folk rock de Neil Young, que já gravou um disco com o Pearl Jam.

A euforia com o grunge fez com que as rádios de rock decaíssem, concentrando demais sua programação no rock barulhento. Na mesma época do grunge, grupos como o metal-farofa Guns N’Roses e os heavies Metallica e Faith No More faziam sucesso, enquanto os brasileiros Sepultura e Ratos do Porão se revelavam grandes grupos internacionais, respeitados pela expressiva legião de fãs em outros países.

Clone mal-assumida

A cultura rock sofreu sua primeira deturpação, e no Brasil houve o estranho hábito de adotar os personagens de desenho animado Beavis & Butthead (paródia de adolescentes rebeldes desenvolvida por Mike Judge para a MTV) como ‘gurus da cultura alternativa’. Muitos chegaram a levar a sério os ‘julgamentos’ da dupla a respeito dos videoclipes, que, segundo os estereótipos do ‘rock pauleira’ (denominação preconceituosa dos moralistas ao rock pesado), beneficiava mais grupos de gosto duvidoso como Motley Crue do que bandas realmente talentosas como The Smiths. Também na Inglaterra houve, na virada dos anos 80 para os 90, um cenário de rock bem superior que o de Seattle, mas foi injustamente ridicularizado pela mídia deslumbrada com a barulheira da moda.

A euforia grunge de 1991-1992 criou no Brasil um cenário postiço de rádios de pop ou bregas mal-convertidas ao rock, falsos fanzines bancados por grandes revistas ou jornais, ou então a lamentável fase da Bizz, comandada pelo preconceituoso André Forastieri, que virou um arremedo grotesco de fanzine pela linguagem que adotou e selos pseudo-independentes bancados pelas grandes gravadoras e que fizeram a fama e a fortuna de nomes como Carlos Eduardo Miranda e Tatola, os quais, em 1993, passaram a formatar o que hoje é o ‘rock atual’ – repleto de nomes de gosto duvidoso como Detonautas, CPM 22 e Charlie Brown Jr.. As rádios de rock originais tentaram concorrer com as rádios bastardas (estas, confusas, não sabiam discernir o que era rádio jovem, do tipo Transamérica e Cidade, e o que era rádio de rock), e pagaram um preço muito alto.

Muitas rádios de rock, verdadeiras ou não, foram extintas entre 1993 e 1994. E a 89 FM, que havia virado um arremedo de college radio estimulada pelo grunge, só resistiu, aparentemente, no segmento rock, por causa do seu marketing. No fim de 1994, porém, a 89 FM sepultou todas as esperanças de virar uma rádio de rock ao menos razoável: depois de uma fase esquizofrênica resultante da luta interna entre os locutores pop e os produtores roqueiros, a 89 FM passou a ser uma espécie de clone mal-assumida da Jovem Pan 2. Uma Jovem Pan 2 com guitarras. Os conhecedores de rock foram derrotados pelos ‘profissionais de rock’. E as rádios de rock pararam de dançar conforme a música.

Pós-doidos

Mas a situação seria ainda pior no Rio de Janeiro. Com a extinção da Fluminense FM que, por esquema de franquia, virou Jovem Pan 2 Rio, muitas rádios tentaram timidamente herdar alguma parte do perfil da antiga rádio de rock. Parecia que a ‘Maldita’ se estilhaçou em cacos. Cada rádio queria apenas pegar uma parte da antiga ‘Maldita’, mas nenhuma se encorajou em reproduzir totalmente o perfil que a consagrou.

Em 1995, a mais pretensiosa e a mais incompetente delas, a Rádio Cidade, passou a ser tida oficialmente como ‘A Rádio Rock do Rio’, causando um sério colapso na cultura alternativa carioca, que chegou a ponto de provocar uma séria crise cultural no Estado do Rio, que, tomado de pagodeiros, funkeiros, axézeiros, clubbers e roqueiros-farofa, viu fecharem várias casas de shows, teve que agüentar a violência das gangues de funkeiros ou de pit-boys (que curtiam a dance-farofa da Jovem Pan 2 Rio), e o cancelamento ou simplesmente a não vinda de atrações estrangeiras ao Rio, mesmo realizando sua turnê brasileira em São Paulo, Curitiba e Porto Alegre.

Não bastando isso, a cultura rock carioca se tornou ridicularizada pelos seus supostos defensores atuais. Os chamados ‘doidos’ (como Monika Venerabile, antiga grande locutora da Fluminense FM que virou paródia de si mesma na Rádio Cidade, depois de diluir seu estilo nas rádios Jovem Pan 2 e Transamérica, chamava os seus ‘fãs’) só curtem o rock barulhento contemporâneo, a ponto de defenderem, intransigentemente, grupos de gosto duvidoso como Guns N’Roses. Não costumam ler livros nem apreciar o cinema e, quando o fazem, é por modismo. Arrogantes ao extremo, eles chamam de ‘imbecis’ todos que discordam de seus pontos de vista, sem muita lógica ou coerência, ignorando que os verdadeiros imbecis são os próprios arrogantes, cujo comportamento define muito bem o perfil dos playboys contemporâneos, rebeldes sem causa de um mundo pós-moderno, mas também pós-MTV, pós-globalização e pós-internet.

Questão de tempo

Graças a esses playboys, a Rádio Cidade, mesmo incompetente, resiste como ‘rádio de rock’, em completa incoerência com sua história original. A cultura rock foi empastelada e recentemente esses jovens ‘roqueiros’ já não se sentem intimidados a disparar comentários contra nomes históricos como Led Zeppelin, The Who, The Clash e Jimi Hendrix. As duas tentativas recentes de voltar o radialismo rock à sua essência original (que não ofende a genuína história do rock e mantém respeito até mesmo às tradições culturais brasileiras), a rádio virtual Rocknet e a retomada da Rádio Fluminense, primeiro em AM e depois em FM, fracassaram por não terem conseguido atingir o grande público, escravizado pelo gueto de playboys e pela hegemonia da rádio oficial destes, a Cidade, agora afiliada da ‘Jovem Pan 2 com guitarras’ de São Paulo, a 89 FM.

Com isso, a cultura rock do Rio de Janeiro passou a viver uma crise. As bandas realmente alternativas caíram no esquecimento. Tendências comerciais como metal-farofa, poppy punk e nu metal se tornaram hegemônicas. A ‘qualidade musical’ voltou a ser medida pelas paradas de sucesso e vendas de discos. Os jovens passaram a ter medo de ouvir o que está fora do hit-parade. Os playboys, conservadores em trajes de rebeldes, agora mandam na ‘cultura independente’, obrigando toda a juventude a defendê-los (e a defender a Rádio Cidade até nos seus piores erros), sob o pretexto hipócrita de que ‘isso é melhor do que pagode ou Backstreet Boys’, o que não ajuda em coisa alguma a cultura rock nem outro tipo de cultura. E, com isso, gêneros não-roqueiros (embora para alguns erroneamente associados ao rock), como reggae, música eletrônica e hip-hop (incluindo a fase comercial do gangsta rap nos EUA) já estão tirando o rock autêntico da preferência cultural da juventude quanto aos ritmos estrangeiros. E até os popularescos – como o ‘pancadão’, ritmo que os leigos dizem que é ‘funk’ – estão tirando proveito dessa crise da cultura rock no Rio.

A única esperança do radialismo rock recuperar os seus melhores e mais honestos tempos está na nova fase da Brasil 2000 FM, em São Paulo. Depois de uma crise de identidade, a Brasil 2000 tirou os ‘profissionais de rock’ de sua equipe, que agora conta com a atuação do veterano Kid Vinil, um conhecedor de rock, na coordenação, resgatando o período em que radialismo rock não era coisa de locutores bonitinhos fingindo rebeldia, e sim de pessoas que realmente gostam e entendem de rock. Embora seu repertório ainda toque coisas convencionais (a rádio procura se adequar à mentalidade MTV dos ouvintes mais jovens, jogando coisas que eles conhecem como isca para depois apresentar coisas menos acessíveis a esse público), a Brasil 2000 já consegue exercer uma postura respeitável nos bastidores radiofônicos. E, se a rádio ainda não viu um forte impacto comercial na sua atual proposta, a tendência é que o faturamento será uma questão de tempo. O mercado ainda precisa saber melhor o que é uma verdadeira rádio de rock.

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Jornalista