Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Entre o fazer e o ser

Na aula que tive no mestrado, da disciplina de Metodologia Científica, lemos as tiras de um livro de Luis Fernando Verissimo intitulado As Cobras, no qual dizia: ‘Será que os cientistas algum dia conseguirão explicar o universo? Acho que sim. Mas só para outros cientistas.’ Após isso, escutando Milton Nascimento e sua música Cálice, refleti acerca das inúmeras maneiras como nós, jornalistas, em nossa profissão universalmente necessária, contribuímos para a sociedade atual, complexa e direcionada pela comunicação e informação (verdadeiramente, subsídios de poder).

Muitos de nós passamos por metamorfoses constantes (repórteres, professores, cientistas, políticos, cidadão), intrínsecas à contemporaneidade – mudar e mudar sempre dialeticamente. Eticamente, alguns se sujeitam ao pensamento dominante, óbvio de nosso tempo que se apresenta formatado nas esferas cientificistas, nas economias estrangeiras, nas políticas capitalistas colonialistas e ideologias de consenso. Outros militam em movimentos alternativos e vivem essas transições como típico da humanidade, especificamente no jornalismo, onde somos interlocutores, interpretadores dos fatos, analistas dos discursos, criticando e sendo criticados por essas possibilidades múltiplas.

A história é nossa aliada e assim, nós, narradores do cotidiano, também devíamos ser: e aí está nossa possibilidade de sermos necessários. Mantenhamos a dignidade de não aceitar o óbvio, o senso comum, os discursos fajutos e arrogantes dos politiqueiros, dos pseudo-intelectuais, dos enganadores do povo, dos falsos profetas ou mesmo das ideologias que comumente divulgamos em nossos meios de comunicação por inúmeras causas (emprego, por exemplo).

Falsos donos da verdade

Não aceitar o óbvio é um desafio para nós, que procuramos comunicar. Sempre destaco o adágio de Descartes aos meus alunos (também sou professor), mesmo sem concordar com ele em muitas coisas: ‘Duvide de tudo’. Assim, a comunicação social (Ciência Social Aplicada), em sua vertente jornalística, enquanto prática profissional, necessita do princípio que há verdades. Tramitamos então sob a vertente de que não existe a verdade, não existe uma verdade absoluta (cientificista, religiosa, capitalista) ou mesmo um discurso hegemônico que nos faça calar.

Existem pontos de vista e cada sujeito desse discurso deve ser questionado de que ponto ele está falando, seu interesse ideológico, sua posição política, suas idéias absolutas. Daí, o jornalista deve ser inteligente e corajoso para saber que o ponto de vista comunicado é a posição do jornalista. Por isso, não podemos aceitar o óbvio como resposta. Ou mesmo, devemos combatê-lo, para tanto militamos aqui, refletindo e criticando para melhorar mais e mais nossa atividade e com humildade, é claro, como escreve o filósofo francês André Comte-Sponville.

Ao duvidar de tudo, em sua prática o jornalista não aceita os discursos apresentados por suas fontes. Ele averigua e duvida até de si mesmo enquanto observador perspicaz. Deve por isso examinar a si mesmo, questionar seu testemunho ocular e auricular. Deve passar pela autocrítica, pela inquirição de seu saber e da ética. Por isso, o desafio da prática das Ciências da Comunicação é questionar o discurso pronto e acabado dos falsos donos da verdade, ridículos em sua finalidade, incoerentes em seus meios, pedantes em seus dizeres.

Sem entregar os pontos ao óbvio

Afinal, não somos meros reprodutores de discursos, como querem muitos dos que detêm o poder político, científico ou mesmo econômico. Somos sujeitos que buscamos a autonomia, no sentido pedagógico-freiriano. Estamos aqui para servir a comunidade, nas suas inter-relações de saberes e, mais do que tudo, como mediadores de visões de mundo.

Por isso, o jornalista busca uma formação pessoal rica, competente, estando entre a dúvida e o esclarecimento dessa dúvida, interlocutor de linguagens e sabedor de seus limites, mas digno o suficiente para não se sujeitar a sujeitos lingüisticamente incompetentes que avizinham nossas redações, se arrogam intérpretes do mundo e, como meros arremedos do mito grego das danaides, vão penando no tártaro do obscurantismo.

Ser comunicólogo é, pois, a base de nossa feitura. Fazer Ciências da Comunicação, sem entregar os pontos aos desejos do óbvio em nossa comunidade e que bravos em sua sana ridícula gritam para os jornalistas ‘Cálice!’

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Jornalista, escritor e professor auxiliar na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Itapetinga, BA