Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Especialistas em coisa nenhuma

Ler jornal diariamente começa a ser algo, vamos dizer, maçante. Os olhos vasculham as páginas, pousam sobre as manchetes, mudam de direção uma e outra vez na vã tentativa de ler as entrelinhas. E assim, após vinte minutos de manuseio do calhamaço diário, fica-se com aquela sensação de que tudo que deveria ser lido já o foi. Mudei eu, como diria o poeta, ou mudou o jornal?

Mudamos os dois. Eu porque, a qualquer hora do dia, quando em movimento, recebo minha ração instantânea de notícias através do celular e quando estacionado através do iPad e depois do monitor de meu computador de mesa. O jornal porque, na eternidade de 24 horas, há muito deixou de concorrer com seu irmã caçula, a web. É que a caçula vara dias e noites abastecendo, com breves pílulas informativas, grande número de portais noticiosos.

É uma luta desigual. Esses tempos glorificam o rápido, o passageiro, o impermanente. E o jornal impresso é exatamente o contrário de tudo isso: é lerdo, demorado e ambiciona permanecer vivo ao longo de suas bem determinadas 24 horas. Notícia bem transmitida não pode mais ser apenas abarcada pelos olhos por intermédio de letras e de imagens estáticas. Não. Precisa nos encher os ouvidos com sua sinfonia de realidade e derramar ante nossos olhos as imagens do acontecimento, preferencialmente no momento mesmo em que acontece. As pessoas ouvidas em uma matéria publicada ganham vida na web ao se fazerem ouvir com sua própria voz, seja carregada de emoção ou vibrando na mais racional argumentação.

Credibilidade e verificação

Quando meus olhos deparam no meio virtual com algum endereço da web logo se dão conta que este se apresenta com sua roupa azulada, quebrando a monotonia do preto no branco. E logo meus dedos são acionados – se o assunto for realmente interessante, curioso – a premir aquele endereço. Enquanto isso, na página impressa, por mais que o editor tenha se esforçado em adicionar o mesmíssimo endereço virtual, ainda assim nenhum comando chega às pontas dos dedos. É um sinal inequívoco de que o leitor tradicional, o pré-internet, deve saciar sua fome com aquele prato feito e nada de ousar se estender mais no assunto.

Antigamente considerávamos pedantes as pessoas que faziam questão de mostrar sua cultura, pessoas sempre a postos para discorrer por longos minutos, quando não horas, sobre o pano de fundo em que surgiu dada notícia. Aos menos ilustrados eram feitas observações pejorativas como “aquele leitor de orelha de livro” ou “aquele que leu apenas uma ou duas notas de rodapé”. Atualmente, só é “menos ilustrado” quem quer – dada a profusão de fontes de pesquisas claramente assinaladas ao longo do minúsculo texto.

Os textos na internet primam pela concisão e pela confusão. São curtos e cheios de novos caminhos azuis (hiperlinks) a serem trilhados. Há quem defenda a ridícula ideia de que as pessoas se recusam a mastigar o que vão ingerir, seja alimento ou informação, preferem recebê-los mastigados e em porções minúsculas. E a pergunta é: que tipo de leitor está sendo gerado? Arrisco-me a aventar algumas respostas. Leitor de manchetes estampadas em sítios e de blogs. Leitor que pouco se importa com a fonte da informação, nada sabe sobre sua credibilidade, e menos ainda acerca de sua autenticidade.

Tempo de leitura

A impressão que tenho é que os novos leitores serão, sem esforço algum, especialistas em coisa alguma. Deixarão sempre para o futuro esta necessidade tão humana de se aprofundar sobre um assunto que lhe cause interesse. E como aquele amante de livros que se contenta em comprar livros e não em separar um tempo do dia para sua leitura, os novos leitores se contentarão apenas em criar fichários onde vão acumulando textos digitalizados ao lado de endereços na web que, com certeza, jamais serão acessados.

Dessa forma, com menos tempo dedicado à leitura, além de não se apropriarem do idioma, se privarão de uma visão completa da realidade que nos abarca e permeia. Teremos diante de nós não mais o leitor de orelha de livro e, sim, o guardador de textos e de endereços virtuais.

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[Washington Araújo é mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter]