Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Estadão discrimina metroviário

Correspondência enviada pelo Sindicato dos Metroviários de São Paulo à editora do caderno ‘Aliás’ do jornal O Estado de S.Paulo, sobre a forma como o jornalista Fred Melo Paiva tratou um profissional metroviário [ver abaixo a íntegra do texto publicado no domingo, 9/4/2006].

Em resposta à mensagem, a editora afirmou que não houve a intenção de ‘ferir o brio da categoria’, que apenas utilizaram um recurso estilístico, e que encaminharia a manifestação à seção de cartas, para que o seu editor avaliasse o pedido de retratação.

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São Paulo, 10 de abril de 2006.

A/C: Laura Greenhalgh

Ref. Pedido de retratação

Em matéria intitulada ‘Eu não sou cachorro não’, publicada no caderno ‘Aliás – A Semana Revista’ deste jornal, no último domingo, 09/04, o jornalista Fred Melo Paiva utilizou o verbo dicendi ‘rosnou’ para se referir à fala do funcionário da Companhia do Metropolitano de São Paulo, que então dialogava com a advogada Thays Martinez, em sua tentativa de se locomover no sistema metroviário com seu cão Boris, estabelecendo uma infeliz comparação do comportamento do metroviário com o de um cachorro. A atitude do jornalista também deixou uma brecha para que a conduta de toda a categoria fosse equiparada a de cães ferozes, demonstrando por parte deste profissional, desrespeito e desprezo pelos metroviários.

Enquanto entidade que representa estes profissionais, vimos por meio deste manifestar nosso repúdio a forma de tratamento pejorativa dispensada a estes trabalhadores que fazem funcionar o melhor serviço público de transporte coletivo, conforme pesquisa realizada pela Associação Nacional dos Transportes Terrestres (ANTT).

O agente de estação de Marechal Deodoro não cumpriu apenas procedimentos determinados pela empresa Metrô, mas também determinações legais de nossa legislação federal e, mais importante, o funcionário da Cia. certamente não se referiu à Sra. Thays e seu cão-guia Boris de forma grosseira ou indelicada, ainda mais por saber que a situação envolvia uma deficiente visual tentando se locomover pela cidade. O que ele não poderia ter feito é simplesmente desrespeitar o procedimento da empresa, por conta e risco.

Não questionamos o direito da advogada de se deslocar pela cidade com Boris, assim como não concordamos com a forma como os trabalhadores do Metrô foram tratados. Logo, solicitamos que o jornalista autor do referido texto divulgado neste jornal se retrate perante o agente de estação de Marechal Deodoro e, de forma mais ampla, perante toda a categoria.

Nos colocamos à disposição para mais esclarecimentos e esperamos que nosso pedido seja atendido.

Cordialmente,

Manuel Xavier Lemos Filho, Diretor de Comunicação e Imprensa do Sindicato dos Metroviários de São Paulo

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Eu não sou cachorro não

Fred Melo Paiva / Copyright O Estado de S.Paulo, 9/4/2006

A primeira vez que Boris deu com a cara na catraca foi na estação Marechal Deodoro do Metrô. Possuindo rabo e sendo quadrúpede, foi tratado como um cachorro: ‘Aqui não é permitido animais’, rosnou o funcionário da companhia, barrando sua entrada. Boris não entendia nenhuma palavra de português – é cidadão americano e está no Brasil a trabalho. Limitou-se a mostrar a língua, sem que houvesse nisso qualquer atitude de escárnio. ‘O fato de ele ser um animal é apenas uma coincidência’, intercedeu a advogada Thays Martinez, 32 anos, fiel companheira de Boris. ‘Ele não está aqui como bicho de estimação. Eu sou cega e este cão é o instrumento que me permite andar pela cidade.’ Diante do inesperado argumento de que o cachorro não era um cão, o funcionário decidiu acionar a chefia. Evocando cláusulas e determinações, a chefia transferiu o problema à instância superior, instância esta que deveria reportar-se a seus diretores, cujos despachos incluiriam a análise dos requerimentos, tudo registrado em cartório e com firma reconhecida. Depois de 7 horas diante do portão de entrada, Boris bocejava com insistência. Foi quando um vira-lata atravessou a rua, enfiou-se por debaixo da catraca e desapareceu pelos corredores da estação. ‘Que País é este?’, teria se perguntado Boris (em inglês), antes de acomodar-se para uma pestana.

Boris é americano do Michigan. Tem 49 anos – quer dizer, 7, se considerarmos a sua idade de cachorro e não de ser humano. É um cão labrador cuja árvore genealógica certamente esconde algum golden retriever, o que justificaria o fato de ser Boris um cachorro dado a um certo cinismo, nada que comprometa no entanto o seu caráter. Boris nunca teve filhos. É virgem, inclusive. Castraram Boris. Essas são questões bastante pessoais, mas devemos nos ater a elas para compreender o tamanho da dedicação de Boris à sua carreira profissional. Boris é um cão-guia, especialista na condução de deficientes visuais. Não ficaria bem, portanto, vê-lo escarafunchando o cio alheio, ainda mais levando a reboque uma pessoa cega. A abdicação de Boris foi premiada essa semana, quando a Justiça finalmente liberou sua pessoa jurídica para utilizar o Metrô sem nenhuma restrição. ‘Uma boa discussão pode abrir portas antes insuspeitadas’, escreveu Quiroga na sua coluna de horóscopo, sexta-feira passada, a respeito dos librianos. Boris é de Libra.

Vem de antes do berço a seriedade com que Boris encara seus desafios profissionais. Treinado pela ONG americana Leader Dogs for the Blind, ele passou primeiro por uma seleção genética. A escola, que prepara cerca de 300 cães-guias por ano, tem tentado aprimorar características físicas e de temperamento adequadas à função – ‘o cachorro não pode ser submisso demais’, explica Thays, ‘e nem dominante em excesso’. A observação desses aspectos leva a instituição a escolher sempre os filhotes mestiços, frutos dos primeiros cruzamentos entre mais de 20 raças do mundo, do pastor alemão ao poodle gigante. No começo, Boris chamava-se Chips (e uma colega sua, Pepsi). Como os outros cachorros da ONG, foi entregue a uma família voluntária quando tinha 2 meses. Nada a ver, ainda, com os deficientes visuais – durante um ano inteiro, essa família tratou de ‘socializar’ Boris, fazendo-o freqüentar restaurantes, viajar de avião junto com os demais passageiros, passear no shopping. Ensinou-lhe ‘boas maneiras’, o que no caso dos cães significa não subir no sofá, não defecar no tapete, não atacar o prato de comida dos seres humanos. Aliás, a comida dos humanos, a exemplo do sexo com animais, está vetada desde sempre.

Na adolescência, os cães-guias são devolvidos à escola. Hora de aprender os ‘comandos de obediência’. O princípio básico é o seguinte: o cão deve andar em linha reta até que haja um obstáculo ou receba a ordem para mudar de direção. Assim, começa a ter noção do que é direita e esquerda. Aprende a parar diante dos degraus e a sinalizar a travessia de uma rua. Desenvolve a capacidade de calcular os obstáculos aéreos – aqueles pelos quais o cachorro passa batido, mas os cegos acabam batendo a cabeça.

Depois de 5 meses de treinamento, tem-se um cão pronto para a labuta – e assim Boris foi parar em um banco de dados, isso quando ainda era Chips. Seu nome passou a fazer parte de um grande arquivo no qual estão listadas cerca de 60 características de cada animal preparado pela Leader Dogs. Essas características seriam depois confrontadas com aspectos físicos e psicológicos dos deficientes visuais, reunidos em um outro banco de dados, similar ao dos cachorros. Foi nessa ‘agência de casamentos’ que Thays encontrou Boris.

Boris não foi o primeiro. Antes dele teve o Astro, um fila brasileiro – Thays era pequena e montava a cavalo nele. Depois veio Tocha, o vira-lata. Debby, uma beagle. Vick, Mini e Bill, os poodles. Paulistana, Thays ficou cega quando tinha 4 anos, por causa de uma caxumba. Só viu o Astro, mas não se lembra da cara dele. Thays não tem memória visual – é como se tivesse nascido cega. Com 7 anos, uma professora da escola contou para ela sobre os cães-guias que tinha visto na Europa. Thays ficou com aquilo na cabeça. ‘Depois, quando eu já era adolescente, comecei a sentir necessidade de ter um pouco mais de independência’, conta. ‘Então fui procurar um daqueles cachorros para mim.’ De cara, comprou um labrador. Tentou treiná-lo por conta própria. Não imaginava o grau de complexidade que envolvia a tarefa – só viria a descobri-lo na internet, quando uma amiga acessou o site da ONG americana. Thays foi buscar Chips no Michigan quando tinha 26 anos – ‘de graça, porque a ética de manuseio do cão-guia é a mesma do transplante de órgãos’. Chips virou Boris. E Boris operou uma mudança substancial na maneira que Thays passou a enxergar o mundo. ‘Tudo o que construí nos últimos anos’, ela diz, ‘foi conseqüência direta ou indireta da qualidade de vida que o Boris me trouxe’.

Boris é hoje um sujeito bilíngüe. Há seis anos no Brasil, aprimorou e muito a sua capacidade de parecer gente. ‘Encontre uma escada para mim’, ordena Thays. E lá vai o Boris. O comando funciona também para ‘elevadores, mesas, cadeiras’ e o que mais se desejar. Se Thays está de tênis, ele anda ‘rápido e relaxado’; se coloca salto, estará atento aos mínimos buracos. Para que memorize um endereço (um cão-guia é capaz de guardar na cabeça cerca de 200), basta que ela o leve duas vezes até o local. Na terceira vez, Boris vai sair de casa, tomar o caminho do Metrô ou do ônibus, sair da estação na direção correta, dobrar esquinas, atravessar ruas, achar a entrada do prédio e levá-la até o balcão de atendimento. Por fim, será agraciado com ‘uns biscrocs’, que é o seu ‘suborninho’ – Boris já abrasileirou-se e esse não é o único indício. Boris gosta de água-de-coco e Chico Buarque.

Errar é humano, mas apesar disso Boris não erra. É apenas ligeiramente cínico, como já se disse. Nada que se compare a um golden retriever, capaz de fazer uma curva com tanta antecedência e sutileza que não será notada pelo deficiente visual – permitindo assim que o ardiloso cão vá urinar numa árvore completamente fora do esquadro. Boris é como um labrador – vai direto ao ponto, sendo assim facilmente descoberto. Um dia, enquanto caminhavam pela calçada, Thais notou uma estranha curva, que ia até o meio da rua e depois retornava à calçada. Voltou para certificar-se da necessidade daquele desvio e descobriu que Boris se desvencilhara de uma árvore caída. ‘Parabéns, Boris!’, disse ela, sacando do bolso o biscroc. Mais adiante, o movimento se repetiu. Mais um biscroc. Logo depois, outro desvio, novo biscroc. Na quarta vez, ela perguntou para alguém que passava: ‘Por que ele está fazendo essas curvas?’ ‘Da primeira vez havia uma árvore no chão’, responderam. ‘Mas das outras vezes, não tinha nada…’ Tinha biscroc.

É muito raro que Boris se comporte como um moleque enquanto estiver vestindo o arreio com o qual Thays o segura. É de uma responsabilidade comovente. Quando trabalhava no Banco Real, entre 2003 e 2005, ela só o liberava depois que ele a levasse até a sua mesa. ‘Agora sim, Boris, vai cumprimentar os seus amigos.’ Boris passava de mesa em mesa, no andar inteiro, abanando o rabo para cada um de seus colegas. Penetrava em reuniões, largava-se no chão ao lado dos mais chegados. Se Thays precisasse dele, dava um ou dois telefonemas até localizá-lo. ‘Boris, a Thays está te chamando’ – bastava isso para que reassumisse seu posto imediatamente.

Thays é de uma família de classe média de São Paulo – estudou a vida inteira em escola pública, o que não a impediu de passar no vestibular para Direito da USP. Trabalhou no Ministério Público, ela e Boris. Hoje é presidente do Instituto Iris (de Responsabilidade e Inclusão Social). Advoga principalmente para o terceiro setor. Há três anos, confiando na sua parceria com Boris, saiu da casa dos pais para morar sozinha – quer dizer, com ele. Thays tem namorado. Boris não liga – quando está em casa, passa a maior parte do tempo deitado em frente à porta da rua. À noite, acomoda-se no edredom que fica no chão do quarto. Há alguns anos, Thays descobriu que Boris gosta de travesseiro. Boris põe a cabeça no travesseiro. Estará aposentado quando completar 10 ou 11 anos (70, em termos humanos). Terá de ser substituído, podendo-se dedicar a ser um cachorro comum em tempo integral. Recentemente, Thays descobriu que Boris também gosta de uma coberta sobre o corpo – de modo que um dia desses é capaz que ele acenda o abajur e puxe um livro do criado-mudo.