Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Estamira, Estamar, Estaserra…

Assim se define a personagem do documentário Estamira, de Marcos Prado, quando fala de si mesma e do orgulho que sente pelo trabalho de mais de vinte anos no Aterro Metropolitano de Gramacho, no Rio de Janeiro, onde recolheu recicláveis para vender e comida para alimentar os filhos. Ela e o lixo, ou o que nomeamos lixo, não se distinguem. São uma só coisa, coisificada, como diria o poeta Drummond. Naquele espaço não há diferença entre os descartáveis, se são objetos ou humanos. Humanos que, para sobreviver, protegem o planeta quando imergem nos lixões para separar o que ainda dá para aproveitar do que realmente não serve mais.

Estamira morreu dia 29 de julho, no hospital Miguel Couto, aos 70 anos, devido a complicações provocadas pelo diabetes. Segundo o diretor Marcos Prado, em matéria publicada nesse mesmo dia pela Folha de S.Paulo online, houve negligência da parte do hospital, que não prestou atendimento a tempo. E poderia ser diferente? Será diferente um dia? Esta senhora foi esquecida pela sociedade, abusada sexualmente quando criança, perdeu o marido, criou os filhos sozinha, foi estuprada quando voltava para casa depois do trabalho, surtou e experimentou em vida um papel que só uma mulher de fibra suportaria. Ou suportar não é bem o nome apropriado para isso?

A morte de Estamira não ocupou as páginas centrais dos jornais nem as telas das televisões. Ela não é celebridade. Celebridades não põem os pés nos lixões, não vivem do lixo, não se alimentam do lixo. Celebridades, em geral, produzem lixo, no sentido próprio e figurado da palavra. Quem vai se interessar pela vida de alguém cuja proximidade com o lixo é tamanha que o próprio corpo parece passar por uma mutação genética? A pele engrossa, o espírito se engessa, a vida fica meio sem brilho, sem esperança. “Se eu me desencarnar, tenho a impressão que serei muito feliz”, diz a protagonista.

Direito à educação

Isso não significa que Estamira quisesse morrer. Ela apenas tem consciência de que todos nós passamos, ou, como diria ela, desencarnamos. Em seus vários monólogos, durante o documentário, ela faz questionamentos profundos sobre o homem, Deus, vida e morte. No Brasil do século 21, esta mulher nos chama a atenção para aquilo que queremos do nosso futuro. Que sociedade é esta que admite ter pessoas vivendo do lixo, comendo lixo? Onde se aplicam os princípios básicos de igualdade que estão na nossa Constituição Federal?

Estamira não teve escolaridade, mas compreendia os abismos econômicos que separam as classes sociais no nosso país. Ela sentiu na pele o que é ser excluída, do começo ao fim da vida. “Eu não tenho raiva de homem nenhum. Eu tenho é dó. Eu tenho raiva, sabe de quê? Do trocadilho, do esperto ao contrário, do mentiroso, do traidor, desse é que eu tenho raiva, ódio, nojo”, comenta a protagonista, com conhecimento de causa. Alguém sugou de Estamira, ao longo de seus 70 anos, seus direitos de cidadã, que poderiam ter sido respeitados com dignidade.

No mesmo dia em que noticiou, em texto breve, a morte de Estamira, a Folha de S.Paulo trouxe a matéria “Cresce número de alunos `atrasados´ no ensino fundamental”, de autoria de Luiz Bandeira. De novo, as estatísticas saltam aos nossos olhos e o fosso fundo em que mergulhou a educação pública brasileira parece se tornar ainda mais evidente. O número de crianças fora da sala de aula, especialmente dos seis aos 14 anos, voltou a crescer. O Estado falha, insistentemente, tanto em níveis estadual e federal, em fazer respeitar a lei, inclusive o Estatuto da Criança e do Adolescente, que define como um direito da criança ter sua educação garantida.

A escuta do outro

Mas será que o Estado falha por acaso ou por que quer falhar? Será que a educação é mesmo importante para os nossos governantes? Se tivéssemos uma população mais educada, com senso crítico, será que boa parte dos nossos políticos se reelegeriam? De acordo com dados do Ministério da Educação, há cerca de sete milhões de crianças em estágio de defasagem educacional por não frequentarem a escola continuamente. “Entre os estados, a pior situação é a do Pará, onde quase 40% dos alunos estão atrasados. Segundo a Secretaria de Educação, isso ocorre devido a trabalho infantil, gravidez precoce e problemas com drogas. A Secretaria diz que tem programas de aceleração para melhorar a situação”, diz o texto.

A vida de Estamira não foi diferente daquela de milhões de brasileiros que também não tiveram e ainda não têm acesso à educação pública de qualidade, aqueles para os quais a Constituição não existe. A maioria não sabe ler, não sabe escrever, não sabe sequer que possui direitos que devem ser respeitados. Eles seguem o seu destino, às vezes alegres, às vezes tristes, tantas vezes invisíveis aos olhos das classes abastadas, embora dentro de si pulsem sonhos, desejos e alegrias que os maus-tratos diários costumam embaçar.

Não está tudo perdido. Essas pessoas são verdadeiros heróis por sobreviverem sob condições tão adversas e, geralmente, em silêncio absoluto, cumprindo suas sinas. Estamira não foi ouvida, mas também não se calou. Graças à sensibilidade do diretor Marcos Prado, ela se tornou conhecida daqueles que assistiram ao documentário. Impossível esquecê-la. Suas palavras são chamados para a escuta do outro, para aquilo que ignoramos no outro, especialmente os milhões de outros anulados por essa sociedade tão desigual. “Eu, Estamira, sou a visão de cada um. Ninguém pode viver sem mim. Ninguém pode viver sem Estamira. Eu sinto orgulho e tristeza por isso.”

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[Rosane de Bastos Pereira é jornalista, doutoranda pela Faculdade de Educação da Unicamp e bolsista de doutorado sanduíche pela Capes (PDSE) na Faculdade de Educação da Universidade de Cambridge (Reino Unido)]