Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Fatos, factoides e factides

Na classificação dos eventos públicos, aos fatos reserva-se a segurança epistemológica. Não se duvida de que o fato tenha ocorrido independentemente da ação direta de quem pela primeira vez o tenha divulgado. Na teoria da ciência, a crença na existência dos fatos é um lugar-comum identificado com as versões mais ingênuas do positivismo: é o fundamento da prática dos ornitólogos ortodoxos.

Já o termo factoide têm sido usado como a designação do pseudo-fato. O factoide ocorre realmente, mas sua existência é consequência da ação direta de alguém profissionalmente interessado na divulgação dos fatos. Permanece a dúvida sobre se apenas divulgar o factoide é falta ética ou se já o seria tão somente produzi-lo.

Mas a imprensa não tem a exclusividade sobre a prática de iluminar os factoides como se fossem fatos. Algo semelhante ocorre nas pesquisas científicas adulteradas com o objetivo de tornar o pesquisador famoso e nos flagrantes policiais resultantes da iminência dos crimes exclusivamente estimulados pela ação teatral da própria polícia.

Por outro lado, aqui se propõe chamar factide a uma variação perniciosamente mais sutil dentro da esfera dos eventos. Se o factoide é um evento público proposital divulgado como espontâneo, a factide é a comunicação pela qual se trata um evento com tendência linguística privada como linguisticamente público, de forma a esconder da audiência a transição. Pela ficção se publicam os eventos linguísticos privados, nascidos na dor de cabeça dos autores. Mas não se espera que o autor honesto ajuíze a obra ficcional, depois de escrita, como se fosse verdade.

O periférico como se fosse central

Por enquanto, o sonho, a dor de cabeça, a fala mental e a imaginação são eventos privados. A não ser Miguel Nicolellis, pelo uso de uma interface cérebro-máquina, ninguém pode divulgar o sonho antes do sonhador. Ele tem a exclusividade sobre o furo. Como ainda não existem sonhos compartilhados, toda referência a um sonho está ligada a um e apenas um sonhador. No mundo privado, pode haver palavras, sentidos de palavras ou palavras e seus respectivos sentidos sem correspondentes no universo público. Aparentemente, é fácil mapear os limites do universo privado: quando o mágico pede ao voluntário pensar em um número de 1 a 10, o voluntário sente absoluta liberdade na sua escolha, sobretudo se não se restringe a imaginar apenas o conjunto dos números inteiros. O sentimento de liberdade e a criatividade são próprios do mundo privado.

Porém, não é tão inequívoco mapear o oposto. A esfera pública pode ser circunscrita em função do conhecimento compartilhado pelos membros da audiência pretendida. A interseção de conhecimentos é a expressão perfeita da esfera pública, dada certa audiência. Usar uma factide não significa afastar-se do conjunto intersecção, veiculando novidades para a maioria, mas pretender afastar o ouvinte de reconhecer-se como membro da maioria. A factide, assim, é afirmar o periférico como se fosse central, na tentativa de autopromover-se, tornando-se a referência principal para a maioria que se fez alienada de si mesma.

A margem do conhecimento compartilhado

Para satisfazer a prática positivista do relato dos fatos, se impõe a velha fórmula do necessário e suficiente. Considera-se o conhecimento compartilhado pela maioria da audiência pretendida, e todos os demais conteúdos são entregues. Se João quebrou a perna, não será necessário explicar que a perna possui ossos, a audiência já o sabe. Mas a compreensibilidade do fato exige certas explicações: onde, como, quais as consequências etc. Os detalhes não fazem parte do conjunto de conhecimentos compartilhados pela maioria da audiência pretendida e não se esperaria que fizessem.

Comunicar-se através da factide é aumentar artificialmente a margem do conhecimento supostamente compartilhado: ‘Alguém do nosso meio quebrou uma parte do corpo e está sentindo muita dor. Meu Deus!’ Se o leitor não sabe quem quebrou qual parte do corpo, é do leitor a falta, e não do veículo de notícias normalmente auto-identificado com o objetivo da divulgação positivista dos fatos. ‘O Brasil inteiro aguarda pelo que será dito aqui por mim em relação àquela polêmica que eu causei [se você não sabe da polêmica, você está na periferia do Brasil, mas posso te trazer para o centro]’, ‘O mundo inteiro está discutindo o assunto acerca do qual vamos tratar depois do comercial [se você não sabe qual é o assunto, você está na periferia do mundo, mas eu sou o redentor que te trará de volta para o centro]’ etc.

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Filósofo e linguista