Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Festa de políticos e comerciantes

O que começou como um protesto (o massacre, em 1857, em Chicago, de 129 operárias têxteis que reivindicavam jornada de trabalho de 10 horas diárias), acabou virando mais uma efeméride que os políticos usam para aparecer e que o comércio aproveita para vender mais: o Dia Internacional da Mulher.

Ainda não chegamos ao ponto de dar presentes às mulheres porque é o seu dia, mas as floriculturas já faturam bastante, da mesma forma que no Dia da Secretária, no Dia das Mães e tantos outros.

Tanto políticos como comerciantes fazem um investimento de longo prazo. Os primeiros aproveitam para mostrar o quanto são feministas, dizem que lutam pela igualdade e que merecem um voto. Os comerciantes, por sua vez, dão flores às mulheres que passam na rua, na esperança de que elas entrem na loja e comprem alguma coisinha.

A verdade é que nossa imagem não anda muito boa.

Nos dias que antecederam a grande data, as mulheres foram tema de pelo menos duas matérias nos jornais diários, que mostram a brasileira como uma consumidora voraz de remédios para emagrecer e como uma gastadeira descontrolada. Mas será que as mulheres são isso mesmo ou a é a mídia que cria essa imagem?

As revistas femininas insistem nos itens beleza, moda e a infalível dieta mensal. A indústria farmacêutica promete, por meio de seus serviços de imprensa, a cada dia um novo remédio milagroso para emagrecer.

E os jornais insistem em diferenciar seus leitores: para os homens, páginas de política economia, esportes e polícia. E para as mulheres um singelo caderno feminino ou de variedades. Note-se que as redações têm, hoje, uma predominância de repórteres, editores e colunistas do sexo feminino.

Quando vira assunto nas páginas masculinas, a imagem mulher é bem ruinzinha. É só observar as edições dos jornais na semana contada a partir de 1º de março, em que a mulher foi manchete por duas vezes. A primeira por liderar o consumo de drogas para emagrecimento, a outra por ser a líder dos cheques sem fundo no mercado brasileiro.

Descontrole ou preconceito?

Houve preconceito ao tratar do descontrole feminino nos gastos. Título de matéria do Estado de S.Paulo (1/3) contém, no mínimo, um exagero: ‘As mulheres foram as campeãs dos cheques devolvidos em 2004’.

A Telecheque entrevistou 4.179 pessoas, das quais 51% eram mulheres. Dois por cento a mais de mulheres. Dois por cento. Isso não é uma vantagem expressiva, que justifique o ‘campeãs’ do título. Os homens também emitem cheques sem fundo, claro. Mas isso o jornal parece não considerar, embora a matéria seja assinada por duas mulheres.

Se as jornalistas fizeram o título ou tiveram que aceitar a imposição da editoria, não dá para saber. E nem adianta ficar especulando de quem é a culpa – ou o mérito, do ponto de vista do jornal – de quem conseguiu transformar uma árdua tabela de números numa matéria que, embora no pé da página, consegue chamar atenção.

Deveríamos discutir o comportamento da imprensa, que recolhe os dados, publica, faz o título mais atraente possível e nem percebe a contradição entre o título e o conteúdo da matéria. Especialmente quando o título cria – ou reforça – a imagem negativa de uma grande parcela da população.

A mesma matéria mostra – mas não enfatiza – que ainda há menos mulheres que homens no mercado de trabalho. O diretor da empresa de pesquisas diz: ‘As mulheres que não trabalham têm ajudado a elevar o índice de cheques devolvidos. Apesar de não ter renda, são elas estão à frente das contas da casa. São elas que emitem cheques para pagar a escola dos filhos, as compras do mês, entre outras despesas’.

Mostra também que ainda hoje as mulheres são em menor número entre os clientes dos cartões de crédito (44% de portadoras do sexo feminino).

Convenhamos: ficar discutindo a inferioridade feminina no que diz respeito a trabalho e participação no mercado consumidor não rende matéria. O melhor mesmo é publicar a pesquisa, arranjar um bom título e seguir em frente, até que haja uma nova oportunidade de falar de mulheres, mesmo que, embora o jornal não perceba, reforçando o preconceito contra elas.

Para ser de outro jeito, os jornais precisariam ter uma brigada feminista de plantão, examinando cada matéria e procurando, nas entrelinhas, o mais remoto traço de preconceito. O que seria, cá entre nós, além de ridículo, impossível.

Enquanto as mulheres continuarem ganhando flores por serem mulheres, e os políticos dedicarem um dia de discursos a elas, é porque ainda não fomos reconhecidas como ser humano pleno. Se é preciso um dia no ano para alguém ser valorizado é porque alguma coisa está mesmo muito errada.

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Jornalista