Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Flagrante de um desamparo

Merecem prêmio jornalístico os flagrantes fotográficos estampados pelo Jornal do Brasil e por O Globo nas primeiras página de suas edições de terça-feira, 4 de maio. (As fotos são, pela ordem, de Paulo Nicolella e Marcelo Sayão/EFE.) Na entrada de um quartel da Aeronáutica, soldados das nossas forças armadas, com fuzis-metralhadoras nas mãos, montam guarda ao lado de uma placa que diz: ‘Visitante. Seja bem-vindo. Volte sempre!’

A foto ilustra a manchete – na verdade, a manchete de quase toda a imprensa diária naquele dia – que anunciava a invasão daquele mesmo quartel da Aeronáutica no Rio de Janeiro por bandidos para roubar, com pleno êxito, armas moderníssimas em número suficiente para equipar um pelotão, coletes à prova de bala e munição.

A foto é um exemplo notável disto que os teóricos chamam de ‘ironia objetiva’, ou seja, não a astúcia socrática definida pelos dicionários como ‘uma particular pilhéria daquele que diz o contrário daquilo que se pode querer fazer entender’, mas a partilha coletiva de um jogo de sentido que destrói a pretensão de auto-suficiência de uma posição. Na ironia objetiva, manifesta-se a cumplicidade de uma mensagem com o mundo, capaz de alertar a consciência do sujeito para os limites da credibilidade no pé da letra de um enunciado qualquer.

Outro grande exemplo, de muitos anos atrás, foi o flagrante de uma cerimônia na Esplanada do Planalto, em pleno regime militar, quando a bandeira nacional, desfraldada ao vento forte, deixava ler não a fórmula ‘ordem e progresso’, mas ‘ordem pro…Esso’. Manifestada no acaso de uma representação, a que o vento dera outro destino, a ironia indicava objetivamente a uma comunidade interpretativa um outro sentido para o que realmente presidia a toda aquela exibição de fausto e poder. Na falta da velha United Fruit Company, que presidira a tantos golpes de Estado na América Latina, inclusive a derrubada de Jacob Arbenz na Guatemala, comparecia ali, por obra e graça semiótica do destino, o nome de um grande foco de interesses norte-americanos.

Procura-se esconderijo

A imagem do quartel chama a nossa atenção, entretanto, para um outro tipo de coisa. É que as autoridades republicanas, secundadas pela imprensa, vêm apostando na convocação das forças armadas para estancar o surto de criminalidade nas grandes regiões metropolitanas, em especial no Rio de Janeiro, onde parece se agudizar a situação. No entanto, a cada dia que passa se torna mais evidente não só que os próprios quartéis são espantosamente vulneráveis à rapina de equipamentos militares, mas também que o contrabando de armas não provém unicamente das fronteiras a serem supostamente vigiadas. Até agora, não se sabe como chegaram aos paióis de munição apreendidos pela polícia carioca as mortíferas minas terrestres que os bandidos pretendiam aparentemente espalhar ao redor da Rocinha.

A realidade é que Marinha, Exército e Aeronáutica tornaram-se fontes constantes de armamento para as facções do tráfico no Rio de Janeiro. Daí, a ironia objetiva do ‘volte sempre!’ à porta do mesmo quartel saqueado um dia antes. Nada, absolutamente nada é capaz de garantir à sociedade civil que os invasores não voltarão. E a mensagem latente da mesma ironia à mesma sociedade é que o caminho para uma solução de um problema que se está convertendo verdadeiramente em ‘questão nacional’ (o da violência urbana) não pode ser entregue exclusivamente às forças da repressão, seja de que natureza forem.

Por isto, têm grande força simbólica essa última invasão de um quartel das forças armadas e suas repercussões midiáticas. Ela assinala a ponta extrema de uma situação insuportável, sobre a qual não se ouviu até agora um único pronunciamento sério da mais alta autoridade da República, o presidente. Diante do que vem ocorrendo, o cidadão comum encontra-se na mesma condição psicológica dos dois militares que desapareceram horas a fio durante a invasão do quartel, a ponto de se julgar que tivessem sido seqüestrados. Na verdade, estavam escondidos, com medo. Nós, também.

Mas onde nos escondermos?