Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Friedman, a tortura e a cabeça de Rumsfeld

Thomas L. Friedman, que escreve para o jornal americano The New York Times, está furioso, quase babando de raiva. No artigo ‘Secretário tem de ser demitido já’, reproduzido pela Folha de S. Paulo, caderno Mundo (7/5), como de costume, procura orientar o presidente Bush sobre o que fazer na questão iraquiana. Só que, desta vez, quer a demissão sumária do secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld. Escreve Friedman:

‘Estamos correndo o perigo de perder algo muito mais importante do que simplesmente a Guerra do Iraque. Corremos o perigo de perder a América como instrumento de autoridade e inspiração moral no mundo. Não conheci uma época em que os EUA e seu presidente fossem mais odiados no mundo do que hoje… Este governo precisa rever sua política iraquiana por completo; se não o fizer, estará atraindo um desastre total para todos nós. A revisão precisa começar com Bush demitindo o secretário da Defesa, Donald Rumsfeld – não amanhã ou no mês que vem, mas hoje. O que houve na prisão de Abu Ghraib foi, na melhor das hipóteses, uma ruptura na cadeia de comando sob a autoridade de Rumsfeld, ou, na pior, parte de uma política deliberada. Seja como for, o secretário da Defesa é, em última análise, o responsável … Se os líderes do Pentágono administrassem qualquer companhia americana com o planejamento visto nesta guerra, teriam sido demitidos já há meses.

‘No 11 de setembro, fomos atingidos por pessoas que acreditavam em idéias odiosas. Não podemos vencer sozinhos a guerra de idéias contra essas pessoas. Apenas os árabes e muçulmanos podem. O que podíamos fazer – e foi essa a única justificativa legítima desta guerra – era tentar ajudar iraquianos a criar um contexto progressista no coração do mundo árabe-muçulmano’. Incrível como Friedman ainda bate na mesma tecla da missão salvadora e humanista dos americanos no Iraque. ‘Não devemos perder uma coisa de vista: por piores que as coisas possam estar no Iraque, a situação ainda não está perdida, e por uma razão fundamental. As aspirações dos EUA para o Iraque e as da maioria iraquiana silenciosa, especialmente os xiitas e curdos, ainda coincidem. Ambos queremos a autonomia do Iraque e, depois, eleições livres … Sim, já é tarde, mas, enquanto houver um vislumbre que seja de esperança de que a equipe de Bush possa fazer a coisa certa, temos de insistir nisso, porque o papel dos EUA no mundo é precioso demais para ser desperdiçado dessa maneira – precioso demais para os EUA e para o mundo’

A grande ironia nessa história toda, se não fosse trágico, é que foi exatamente a imprensa americana, a maioria dos seus veículos de informação – jornais, revistas, TVs, rádios etc. –, quem mais ajudou a criar o clima de vingança e de necessidade de responder militarmente aos atentados de 11 de setembro.

Uma boa frase do Friedman

Foi o engajamento excessivamente patriótico – e interesseiro – da mídia ianque na invasão ao Afeganistão e depois ao Iraque que sedimentou a sensação de missão divina dos americanos em destituir do poder o ditador Saddam Hussein e implantar um regime democrático no país árabe. Sequer contestou a veracidade ou não da afirmação de Bush sobre a existência de armas de destruição em massa no Iraque. Foram a censura e a manipulação das informações, feitas pela mídia, que impossibilitaram o debate com a população americana sobre o real motivo das invasões: petróleo e gás abundante e barato (insumo energético fundamental para a economia americana); apoio a Israel na luta contra os palestinos; domínio político, econômico e militar do Oriente Médio; necessidade de maior legitimação política interna do governo Bush; e os interesses específicos da indústria petrolífera americana, especialmente das empresas, direta ou indiretamente, ligadas à família Bush, ao vice-presidente Cheney e a tantos outros que fazem parte do governo americano atual.

Friedman, desde que a invasão começou, enfatizou essa questão da missão divina na implantação da democracia no Iraque em seus escritos. Sua opinião conservadora, de certa forma, simboliza esse papel patriótico-autoritário do governo ianque e da falta de liberdade de opinião da imprensa americana no episódio. Quem procurou fugir a essa regra patriótica de se enrolar na bandeira, na imprensa ou fora dela, foi tachado de impatriótico, de ir contra os ideais e valores americanos de democracia e tudo mais. E agora, que o ‘caldo entornou’, que o mundo todo ficou sabendo que a missão divina trazia consigo métodos de tortura e de humilhação aos presos iraquianos, frustração e raiva vêm à tona. Como é possível aceitar que soldados americanos e ingleses, todos eles criados nos mais altos valores da civilização ocidental cristã e democrática, possam cometer tais atrocidades contra seres humanos? Uma ingênua pergunta de uma ingênua população? Se for tão ingênua assim é porque censura e manipulação das informações funcionaram muito bem nos corações e nas mentes dos americanos.

Por mais irônico que possa parecer, nos textos de Friedman há uma terrível constatação. A mídia ianque não aceita que falhou, que atuou mais como agência de propaganda do que como imprensa. E para se livrar dessa situação vexaminosa, com alguns membros do governo Bush, está à procura de um bode expiatório. O falante secretário Rumsfeld é a pessoa certa para o papel. Bush terá de ceder um de seus braços – e olha que os dois são direitos! – para saciar a fúria de parte da população americana envergonhada e diminuir as críticas, desta vez vindas de quase todas as direções. E Friedman não deixa por menos. Tem de ser o secretário de Defesa o sacrificado e, assim, ‘senhor presidente, é possível continuar com a ocupação e com a missão divina e heróica do povo americano de ajudar o povo do Iraque’.

Esta poderia ser, muito bem, uma frase do Friedman.

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Jornalista