Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

História de superação?

Alguém aí se lembra quais eram as notícias que vinham diariamente do Rio de Janeiro até poucos dias atrás? Vou dar algumas dicas: a paisagem mais retratada nos jornais era o complexo do Alemão ou o Pão de Açúcar? Os estouros eram de tiros ou de fogos? As lágrimas eram de emoção pela conquista ou de tristeza pela perda de parentes, amigos e até da esperança? É óbvio que não nos esquecemos do cotidiano violento noticiado nos jornais, TVs, rádios e revistas. E principalmente os cariocas, que sentem na pele a situação, assim como tantos outros milhões de moradores dos grandes centros urbanos brasileiros.

Mas, desde o dia 13 de julho, parece que as coisas mudaram. A violência sai de cena e em seu lugar entram os Jogos Pan-Americanos. ‘De repente, é aquela corrente pra frente, parece que todo o Rio – isto é, o tráfico, as milícias, a polícia e todo o restante da população – deu a mão’ para ‘viverem essa energia’. Como que num passe de mágica, as coisas mudaram da água para o vinho, ou melhor, do caveirão para o Engenhão. Será a mais brilhante ‘história de superação’, destas que vemos em matérias emocionantes num boletim esportivo – onde é narrada a infância humilde de atuais atletas que, após viverem anos de privações, conseguem mudar de vida através da dedicação e disciplina empregadas ao ‘dom’ esportivo, superando os ‘obstáculos da vida’ – que acabam geralmente com a imagem do atleta, em lágrimas, olhando a bandeira brasileira ao som do hino nacional?

À espera do ‘salvador’

Não. Infelizmente, nada foi superado: nem a violência, nem as práticas duvidosas na composição de orçamentos para obras públicas e em licitações (como as do PAN) e nem as infâncias cheias de privações de grande parte da população brasileira, ocasionadas, entre outras coisas, por estas mesmas práticas duvidosas de pessoas que usam os órgãos públicos para obterem vantagens para negócios privados, desviando ou empregando de forma inadequada recursos que são importantíssimos em áreas fundamentais como saúde, saneamento, habitação, educação etc., comprometendo a formação de pessoas que poderão também se render ou serem rendidas pela violência cotidiana.

Histórias de atletas que superam as dificuldades e conseguem viver do esporte não deveriam ser noticiadas com esse tom de ‘conto de fadas’ e ‘só depende de você’. Esses atletas são mesmo heróis, mas suas histórias mostram uma triste realidade, que na maioria absoluta das vezes não têm um final feliz. É inacreditável como as coisas são vistas de maneira fragmentada em nossa sociedade. Pois bem, para falar somente de esportes: porque EUA e Cuba sempre lideram o quadro de medalhas?

Apesar do antagonismo entre as estruturas sociais, nesses dois países a prática das variadas modalidades esportivas é incentivada desde a infância em escolas bem estruturadas, isto é, onde há a preocupação com a formação cidadã. Com potenciais atletas, a qualidade sempre será melhor. É óbvio que a melhor disposição dos recursos financeiros em patrocínios e investimentos é importante, mas o essencial vem bem antes: o incentivo e acesso na infância.

Aqui, onde a educação é avaliada por números, e não pela qualidade, vivemos à espera do ‘salvador’, do ‘milagre’, da ‘mágica’ e agora da ‘energia’ que fará as coisas mudarem para melhor, muito melhor. Não nos enganemos: tudo permanece igual! E prepare-se, até a ilusória paz e energia acabará no próximo dia 29.

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Sociólogo, São Paulo, SP