Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Idéias elitistas, reacionárias e acacianas

Duas semanas atrás, publiquei no Observatório um artigo em que criticava o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa que está para entrar em vigor nos próximos meses, chamando a atenção para a capitulação cultural que ele representará, bem como para os usos que se têm feito de certa modalidade lingüística como meio de exclusão e segregação social no Brasil (‘Falar brasileiro, escrever português‘). Na ocasião, eu considerava que nossa língua já assumiu personalidade própria e que, se fosse para reformar sua ortografia, poderíamos pensar num modo de aproximá-la das características da fala e dos usos brasileiros.

Já esperava que o artigo pudesse provocar alguma reação por parte de mentalidades colonizadas, mas confesso que o texto de contestação escrito pelo professor de ‘português’ Antônio Pereira de Menezes, de Curitiba, me surpreendeu pela audácia, o anacronismo e o despudor de suas idéias elitistas e antidemocráticas (‘Falar português, escrever português‘).

O referido professor investe contra a Universidade de São Paulo e o que chama de ‘modernices paulistanas’, qualifica Mário de Andrade como ‘fastidioso e intolerável’, define como ‘barbaridades’ as obras do maior poeta brasileiro e também do autor de O rei da vela. Para mim sobrou ser chamado de jacobino e ‘Marat da USP’.

Superficialidade e verborréia

Quanto à Universidade de São Paulo e aos três Andrades boçalmente atacados, considero que, a esta altura de nossa história cultural, a excelência da instituição e grandeza dos clássicos escritores modernistas dispensam qualquer palavra em sua defesa. Seria repetir o que os mais importantes historiadores e críticos da cultura brasileira já escreveram. Quanto a mim, ainda jovem e recentemente egresso dos estudos de pós-graduação, apenas considero ter sido sobreestimado na comparação com o famoso revolucionário do movimento de 1789 na França.

Pela maneira como o professor Antônio interpreta a expressão ‘herói sem nenhum caráter’, referente a Macunaíma, conclui-se que ou ele não leu a obra ou a leu pessimamente. Como se sabe, o personagem de Mário de Andrade é uma representação do brasileiro, um povo de formação recente em busca de uma identidade nacional própria, já que se formou na confluência de várias culturas e etnias. Portanto, ‘sem caráter’ neste caso nada tem a ver com a crônica diária de Brasília, nem com o comportamento de nossa casta dominante.

A lista de autores-modelo para a língua ‘portuguesa’ apresentada pelo professor Menezes também surpreende, tanto do lado brasileiro quanto do lado português. Por certo, o critério utilizado não foi o da importância dos escritores citados na história das literaturas dos dois países, mas apenas o de sua ‘correção’ ortográfica. De outro modo, como explicar a presença de aleijões como Castilho e Humberto de Campos ao lado de Camões, Vieira, Machado de Assis e Euclides da Cunha? Como justificar a superficialidade torrencial de um Coelho Neto ou a verborréia pseudo-exuberante de um Rui Barbosa no cânone do professor curitibano?

O catecismo da Veja e do JN

A propósito, estou certo de que Machado de Assis ficaria muito pouco lisonjeado ao ser evocado para sustentar as idéias do professor Antônio. São conhecidas as sátiras que o autor de Brás Cubas fazia, no final do século passado, ao latinista Antônio Castro Lopes, que naquela época granjeou alguma notoriedade com suas propostas de substituição de palavras estrangeiras por neologismos formados a partir de radicais e complementos latinos, a fim de se manter a pureza do ‘português’. Para Machado, a atitude de Castro Lopes ‘vinha da obstinação com que o digno professor ia bater à porta latina, antes de saber se tínhamos em nossa própria casa a colher ou o garfo necessário às refeições’. O Antônio nosso contemporâneo, por sua vez, não somente preconiza que continuemos a buscar nossos talheres na casa latina, mas que toda a nossa refeição lingüística seja realizada no lar português.

Perguntaria ao professor Menezes quais são as fantásticas realizações da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, que repercussão têm tido, e também se o eminente mestre paranaense tomou parte nas discussões relacionadas ao acordo ortográfico que nos será impingido.

Na outra lista apresentada por ele, relacionando alguns publicitários do ‘português’ nos meios de comunicação de massas, surge a primeira manifestação explícita do preconceito do professor Antônio, que não admite a música popular nem a fala dos políticos como exemplos de usos da língua. Lógico, o adjetivo ‘popular’ provoca erisipela nos brios conservadores, e os políticos, no catecismo da Veja e do Jornal Nacional, por exemplo, são todos corruptos e indistintos.

Aversão da casta dominante

Mas é nos dois últimos parágrafos do texto do professor Antônio de Menezes que o impudor atinge o cume. Na sua visão de mundo, todos estamos aqui numa luta sem trégua pelo progresso. Qualquer um pode atingir os píncaros de superioridade de certos níveis econômicos e culturais com muito esforço e a língua chamada ‘culta’ é um dos principais meios de para se conquistar essa maravilha. A seu ver, a cultura, os valores e a organização das pessoas de nível econômico desprivilegiado correspondem biunivocamente a seu status social, sendo inferiores, portanto. Quem não se esforça, quem não aprende a língua ‘culta’ nem adquire ‘cultura’ e vultosos recursos financeiros, jamais poderá fazer parte da plêiade dos eleitos que é dona do poder no Brasil. Será que o professor Antônio já folheou as páginas de Caras para ter uma idéia do nível de ‘cultura’ dos astros do seu firmamento? Por que será que os professores de português, que bem conhecem essa língua ‘culta’, vivendo de destrinçá-la e prescrevê-la, jamais conseguem ascender socialmente?

O preconceito irrefreável do professor Menezes faz com que ele tenha horror da linguagem do presidente Lula, um ex-operário. O cargo máximo da República, para o docente de Curitiba, só poderia ser preenchido por luminares do bacharelismo, com sua lábia enroladora. Nem com sua domesticação e conversão a servo dos interesses das oligarquias financeiras, o presidente Lula conseguiu modificar a aversão da casta dominante a tudo o que lembra os humilhados e ofendidos.

Ideologia insustentável

Se o professor Antônio reparar bem, verá que está longe de ser minimamente aceitável a sua afirmação de que ‘somos uma civilização filha de matriz européia’. A começar pelo nome tupi da própria cidade onde ele vive, passando pelos negros exuberantes do nosso futebol e da nossa música, chegando aos asiáticos e árabes da nossa vida pública, pode-se afirmar, juntamente com os grandes intérpretes do Brasil, que somos uma civilização mestiça, uma criação original dos processos históricos. E nessa mistura, as matrizes indígena e africana são, evidentemente, tão fundamentais quanto a portuguesa.

As idéias do professor Menezes merecem consideração por serem bastante representativas do pensamento elitista à moda brasileira. Marcado por algumas pinceladas de pedanteria, seu estilo poderia ser qualificado como acaciano, para usar um termo originário de um fino estilista português. Ainda assim, sua própria escrita se mostra bastante devedora das ‘modernices paulistanas’, pelo tom menor e o vocabulário em geral mais transparente.

De tempos em tempos, algumas das vertentes mais retrógradas da sociedade brasileira vêm a público alardear seus inconfessáveis valores, justificar seus sórdidos privilégios. Parece que estamos vivendo um desses momentos. Ontem, foram as marchas da Tradição, Família e Propriedade; hoje, são os atos do movimento Cansei. Nesse contexto, os reacionários estão por aí, tagarelas, pretendendo difundir uma ideologia insustentável diante da realidade brasileira.

Nossa língua morena

Num país que ainda não resolveu os problemas mais fundamentais dos direitos da cidadania, pode parecer bizantinismo discutir publicamente questões relacionadas ao idioma nacional. No entanto, este não é um debate menor, muito menos inócuo. A língua é a criação mais refinada da cultura de um povo. Em nosso caso, jamais conseguiremos alcançar um mínimo de coesão social, nem construir uma vigorosa identidade nacional – que nos permita, inclusive, navegar com autonomia na globalização – sem a valorização do nosso idioma. Sem língua própria, não teremos sequer pensamento próprio. Por outro lado, a essa altura da história, que identidade um brasileiro tem com um português, um cabo-verdiano, um timorense, um goense? No caso específico de Portugal, sua opção histórica é obviamente construir seu futuro como país do bloco europeu. E nós oscilamos entre a destinação latino-americana e aquela dos grandes países eufemisticamente chamados ‘em desenvolvimento’ – Rússia, Índia e China, principalmente.

Por fim, ressalto que estas idéias em favor de um maior respeito à língua nacional não apresentam o menor matiz antilusitano. Admiro a cultura, a literatura, a história e o povo de Portugal, país onde há alguns anos passei cerca de uma semana, tendo retornado com ótimas impressões. Ao longo da vida, tenho tido uma convivência cordial com alguns portugueses. Apenas já passa da hora de enfrentarmos a maldita herança colonial com os pressupostos efetivos da democracia, bem como de nos afirmarmos em nossa especificidade.

O professor Antônio e os elitistas em geral haverão de se afogar nas águas mestiças da brasilidade. A despeito de seus chiliques, nossa língua morena naturalmente continuará se realizando para além do leito de Procusto do ‘português’ branquinho.

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Professor, doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo, Divinópolis, MG