Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Imprensa semeia anti-orientalismo e colhe intolerância

O saudoso Edward W. Saïd passou sua vida estudando as representações distorcidas feitas no Ocidente do Oriente. Escreveu duas preciosidades sobre o assunto.

No livro Cultura e imperialismo, Saïd procurou mostrar ao ocidental como vários artistas se apropriaram do Oriente e o reconstruíram de maneira caricata. No discurso literário, o imperialismo do Ocidente aparece mesmo quando se esconde sob um suposto humanitarismo. As palavras de Saïd são candentes: ‘(…) Muitos objetos estéticos grandiosos do imperialismo são relembrados e admirados sem a bagagem de dominação que carregaram entre sua gestação e apresentação. No entanto, o império ali permanece, na inflexão e nos traços, para ser lido, visto e ouvido. E por não levarmos em conta as estruturas imperialistas de atitudes e referências que eles sugerem, mesmo em obras como Aida, que parecem não guardar relação com a luta pelo controle territorial, reduzimos tais obras a caricaturas, refinadas talvez, mas ainda caricaturas.’

Na obra Orientalismo, Eduard W. Saïd procurou expor de maneira absolutamente precisa e erudita como as representações políticas e ideológicas do Oriente foram criadas, atualizadas e refinadas ao longo dos séculos, de forma a permitir discursos como os de Balfour e Cromer.

Estúpido e negligenciável

No princípio do século 20, o britânico Arthur James Balfour proferiu um discurso na Câmara dos Comuns sobre os problemas no Egito. Após analisar o mesmo detalhadamente, Saïd percebeu que o discurso pode ser decomposto da seguinte maneira: ‘A Inglaterra conhece o Egito; o Egito é o que a Inglaterra conhece; a Inglaterra sabe que o Egito não pode ter auto-governo; a Inglaterra confirma esse conhecimento ocupando o Egito; para os egípcios, o Egito é o que a Inglaterra ocupou e agora governa; a ocupação estrangeira torna-se, portanto, ‘a própria base’ da civilização egípcia contemporânea; o Egito requer, até insistentemente, a ocupação britânica.’

No discurso de Balfour, o Egito não um país. É uma categoria britânica. Os egípcios não são seres humanos, mas coisas que preenchem um espaço geográfico ocupado pelo exército colonial da Inglaterra.

Ao contrário de Balfour, Cromer foi governador colonial dos egípcios. Mesmo assim nunca fez quaisquer ‘…esforços para esconder que, a seus olhos, os orientais eram apenas o material humano que ele governava nas colônias britânicas’. Para Cromer, o oriental ‘…age, fala e pensa de um modo exatamente oposto ao do europeu’.

A leitura dos livros de Saïd nos ajuda compreender como as relações entre o Ocidente e o Oriente foram lentamente moldadas de maneira a permitir uma verdadeira colonização cultural e territorial do Oriente Médio. No livro Orientalismo o autor assegura que ‘…a versão do mito criada no século 20 tem sido mantida com muito maior dano. Produziu uma imagem do árabe visto por uma sociedade ‘adiantada’ quase ocidental. Na sua resistência aos colonialistas estrangeiros, o palestino era ou um selvagem estúpido ou uma grandeza negligenciável, moral e existencialmente’.

Distorções e ódio

A cada episódio dramático do conflito entre israelenses e palestinos e norte-americanos e iraquianos/afegãos, a inferioridade moral dos ‘inimigos do Ocidente’ tem sido reforçada pela imprensa. Os homens-bombas são sempre descritos como terroristas. Os pilotos norte-americanos e israelenses que despejam bombas e mísseis em alvos civis não são terroristas, são soldados eficientes cumprindo seu dever de retaliar a brutalidade dos terroristas.

Mesmo tendo razões para suspeitar das mentiras difundidas por Bush e seus comparsas, parte significativa da imprensa mundial legitimou as campanhas norte-americanas no Oriente Médio. Há bem pouco tempo ficamos sujeitos às referências diárias sobre a ‘inferioridade moral dos árabes’, a ‘estreiteza da mente árabe’, o ‘atraso do tribalismo árabe’, a ‘violência insidiosa do islamismo’. Estes defeitos inatos dos orientais eram sempre contrapostos às virtudes ocidentais (democracia, humanitarismo etc.). Foi a construção jornalística da ‘barbárie natural do árabe’ que justificou as maiores atrocidades cometidas desde o Vietnã (bombardeios a civis, tortura e execução de prisioneiros de guerra, degradação do meio ambiente nos territórios ocupados e devastados etc.).

Os leitores de Edward W. Saïd percebem rapidamente que as recentes invasões do Iraque e Afeganistão foram, de certa maneira, ocasionadas pelo orientalismo. Por isto, não fiquei nem um pouco surpreso esta semana quando um colega me informou sobre a existência de um website exclusivamente destinado a difundir distorções sobre o islamismo e o ódio mortal aos islâmicos (http://www.thereligionofpeace.com/).

Fomentando a irracionalidade

Já na década de 1970, o eminente professor afirmava que o ‘…orientalismo também se espalhou nos Estados Unidos, agora que o dinheiro e os recursos árabes tem acrescentado um considerável charme à tradicional ‘preocupação’ com o Oriente, estrategicamente importante. O fato é que o orientalismo tem se acomodado com sucesso ao novo imperialismo, no qual os seus paradigmas regentes nem contestam, e até confirmam, o persistente desígnio imperial de dominar a Ásia’.

Com a ajuda das representações distorcidas veiculadas pela imprensa ocidental, a internet está aprofundando a tendência acima mencionada. Estaríamos vendo nascer no Ocidente algo semelhante ao ódio irracional que os nazistas devotavam aos judeus?

Em razão de se comportar como uma prisioneira conceitual do orientalismo, a imprensa está fomentando a irracionalidade, a barbárie, a intolerância e a guerra religiosa. Quantos http://www.thereligionofpeace.com/ serão necessários para os jornalistas começarem a se dar conta do que realmente estão fazendo?

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Advogado, Osasco, SP