Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Imprensa tem o rabo preso. Anistia Internacional, não

Durante a ditadura de 1964/85, qualquer semelhança da realidade das ruas e dos porões com as notícias, interpretações e opiniões da grande imprensa era mera coincidência. Embora a censura e as intimidações ajudassem a manter a ordem unida nos veículos mais importantes, houve também muita colaboração voluntária com o regime militar.

Para sabermos o que realmente acontecia em nosso país, éramos obrigados a acompanhar dia após dia transmissões de rádios estrangeiras, na esperança de que colocassem no ar algo sobre o Brasil. De vez em quanto, alguém obtinha revistas e jornais de outros países que traziam matérias esclarecedoras, botando-os para circular entre os amigos confiáveis, até perderem a tinta de tão manuseados. Os veículos alternativos também conseguiam furar o bloqueio informativo, vez por outra.

Mas o certo é que a esmagadora maioria da população brasileira ignorava as atrocidades e os fracassos do regime (até epidemia de meningite era escondida dos cidadãos!), além de ser levada a crer em versões exageradíssimas dos êxitos.

‘Alvíssaras, há 24 anos a imprensa é livre para noticiar o que quiser!’ – dirão os cândidos. O único problema é que a imprensa mantém o colaboracionismo voluntário… com o sistema. E nem precisa de censura e intimidações para mantê-la no caminho da desinformação programada.

Violência dos criminosos e da polícia

Vai daí que o melhor editorial sobre a situação brasileira não foi produzido por veículo de imprensa. Nenhum foi capaz de, em apenas quatro parágrafos, dizer tudo que se deve dizer sobre o Brasil de hoje:

‘A sociedade brasileira permaneceu profundamente dividida em termos de realização dos direitos humanos. A expansão econômica e os projetos sociais apoiados pelo governo contribuíram para algumas reduções das disparidades sócio-econômicas. Entretanto, apesar das modestas melhoras na diminuição da pobreza, a desigualdade na distribuição de renda e de riquezas continuou sendo uma das maiores da região. Enquanto isso, as violações de direitos humanos que afetam milhões de pessoas que vivem na pobreza não receberam praticamente nenhuma atenção. As comunidades mais pobres permaneceram sem conseguir ter acesso a serviços necessários. Além disso, vivenciaram um elevado grau de violência praticada por quadrilhas criminosas e sofreram violações sistemáticas de direitos humanos por parte da polícia.

As comunidades urbanas marginalizadas continuaram tendo de enfrentar as consequências de viver sem proteção social suficiente. Além disso, sofriam as consequências de políticas de desenvolvimento urbano discriminatórias e da falta de qualquer provimento de segurança pública. Em consequência disso, muitas dessas comunidades acabam presas em favelas ou em sub-habitações, onde vivem encurraladas entre a violência dos criminosos e os abusos da polícia.

Políticas de comportamento repressivo

Nas zonas rurais, trabalhadores sem terras e povos indígenas foram intimidados e ameaçados com violência e com expulsões forçadas. A expansão agro-industrial e projetos de desenvolvimento governamentais e privados reforçaram a discriminação social e a pobreza que há décadas afetam as comunidades rurais. Os direitos humanos e constitucionais dessas comunidades foram regularmente desconsiderados, seja pela falta de acesso à Justiça e a serviços sociais, seja por violência e intimidação das empresas de segurança privadas irregulares que protegem interesses econômicos poderosos.

Muitas das pessoas que defendem os direitos humanos de comunidades marginalizadas, entre as quais estão advogados, líderes sindicais e ativistas comunitários, foram criminalizadas pelas autoridades e ameaçadas por aqueles cujos interesses desafiam.’

Trata-se da abertura do capítulo sobre o Brasil do Informe Anual 2009 da Anistia Internacional.

Voltamos aos maus tempos em que precisávamos recorrer a estrangeiros para ficarmos sabendo o que acontecia em nosso país. E ainda temos de baixar a cabeça, envergonhados, quando recebemos pitos como o do coordenador da Anistia Internacional para assuntos brasileiros, o britânico Tim Cahill, que constatou:

‘Existe um conceito infeliz no Brasil de que os direitos humanos só defendem bandidos. Tal conceito é popularizado e utilizado por pessoas que têm interesse em mantê-lo. Isso ajuda na justificação de políticas de comportamento repressivo, como as megaoperações no Rio de Janeiro ou a ideia de que os índios ameaçam os interesses econômicos do Mato Grosso do Sul. Várias ações governamentais no Brasil acabam sendo executadas para satisfazer àqueles que não acreditam nos direitos humanos.’

Irrespondível.

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Jornalista e escritor, mantém blogs aqui e aqui