Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Interesse público ou interesse do público

Um fato curioso ocorreu na imprensa portuguesa e incentiva uma importante reflexão da mídia brasileira no momento que o país sedia mais um mega evento esportivo. Pedro Santana Lopes, ex-primeiro-ministro de Portugal, estava dando entrevista ao vivo no estúdio do canal privado português SIC Notícias. Ele comentava as eleições do país no momento em que foi interrompido para a transmissão da chegada do treinador de futebol José Mourinho a Lisboa, recentemente demitido pelo clube inglês Chelsea. A interrupção mostrou uma imagem confusa de um carro saindo do aeroporto. O repórter Pedro de Freitas então noticiou a chegada do técnico em um avião particular ao aeroporto de Lisboa.

Assim que a transmissão voltou aos estúdios, o político entrevistado desabafou. “Eu vim com sacrifício pessoal e sou interrompido por causa da chegada de um treinador de futebol. Acho que o país está doido. Não vou continuar a entrevista, acho que as pessoas têm de aprender”, disse Santana Lopes.

A entrevistadora Ana Lourenço, surpresa com a reação, tentou amenizar os ânimos, mas não obteve sucesso. O político do partido social-democrata ainda disse que não fazia isso por preciosismo, e sim porque tinha regras próprias e não podia deixar de cumpri-las. O fato virou notícia, sendo noticiado até mesmo fora do país, como aconteceu no Brasil pela SporTV. Veja o video:

Esse caso exemplifica a dedicação da televisão de Portugal ao futebol. Todos os anos, os horários com maior número de telespectadores estão sempre relacionados com o futebol. A quantidade de programas e canais específicos disponíveis sobre o esporte bretão é altíssima.

Evidentemente a pauta não passa despercebida nas edições jornalísticas. No caso da interrupção da entrevista, a empresa SIC justificou que ela foi necessária devido à importância internacional do técnico José Mourinho e ele poderia a qualquer momento anunciar qual será o próximo clube que irá treinar.

Bons valores e práticas não podem ser abandonados

A revolta de Santana Lopes fomenta uma reflexão que pode muito bem atravessar o Oceano Atlântico em direção à realidade brasileira. Quais são as prioridades noticiosas da mídia no Brasil? O que é mais importante: “interesse público” ou “interesse do público”?

O país do futebol viveu em 2014 momentos de euforia esportiva na Copa do Mundo e em breve terá o esporte novamente dominando a pauta noticiosa do país com as Olimpíadas do Rio de Janeiro. Seja na publicidade ou nos conteúdos jornalísticos, percebe-se a onipresença do esporte.

É sabido que o público, muitas vezes cansado da rotina de trabalho, tem preferência clara pelo entretenimento, seja a novela ou o jogo de futebol. Entretanto, independente do momento, cabe ao jornalismo avaliar sempre sua responsabilidade social. Ele necessita reforçar o seu diferencial perante outros programas de entretenimento e esporte.

A informação esportiva (o futebol, predominantemente) deve fazer parte do jornalismo, porém dentro de critérios sensatos, avaliando-se sempre o verdadeiro valor em cada situação. O exagero deve ser eliminado. Casos como o de Santana Lopes poderiam acontecer facilmente no Brasil, se houvesse coragem para isso. Entretanto, a mídia conta com a passividade de quem presencia a inversão de prioridades jornalísticas.

É cômodo culpar a população de desinteresse pelos assuntos sociais importantes e ao mesmo tempo dar preferência ao que não é importante. Entretanto, os bons valores e práticas não podem ser abandonados pela mídia que diariamente informa o cidadão.

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Lucas Marinho Mourão é jornalista e doutorando em Comunicação