Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Já era impossível distinguir

Contemplando nos jornais e TV Lula e Bush lado a lado, sorridentes, como velhos amigos, veio-me à memória de modo espontâneo o desfecho do livro A revolução dos bichos, de George Orwell: ‘Já era impossível distinguir quem era homem, quem era porco’.

Para quem se lembra da história, os homens, expulsos pelos animais da granja, voltam a ser amigos de uma elite de animais que se proclamaram mais iguais que os seus iguais.

Já era impossível distinguir presidente de presidente. Estavam irmanados. Talvez tenham discutido nos bastidores. Talvez tenhamos sido poupados das desavenças graças aos protocolos da diplomacia…

Bush partiu feliz: ‘Podemos ter sentidos políticos diferentes, mas compartilhamos os mesmos objetivos’. Que objetivos? Lula, por sua vez, revela que tudo transcorreu em paz: ‘Foi um diálogo muito franco. Não houve nenhum momento de tensão na conversa’.

Na edição da Folha de S. Paulo de 12 de agosto de 2002, Lula, ainda presidenciável, participando do ciclo ‘Candidatos na Folha‘, afirmou, de maneira truncada mas com franqueza: ‘Eu acho que os Estados Unidos são um país, eu, por exemplo, acho que cada vez vai ficando mais provado que Bush precisa procurar uma outra coisa para fazer ao invés de querer ficar fazendo guerra’. Mesmos objetivos? Nenhuma tensão?

Parceiro e amigo

Ainda naquela ocasião, quando lhe perguntaram diretamente o que pensava da grande prepotência, a resposta foi potente: ‘Eu acho que os Estados Unidos são um país que gosta muito de democracia na casa dos outros, gosta de exigir que os outros façam, mas não cumpre’. Objetivos iguais? Tudo tranqüilo?

Compreendo que os líderes políticos, em visitas oficiais, devam sorrir para as câmeras, apertar as mãos um do outro com aquela efusividade incontida durante tempo suficiente para que todos os fotógrafos possam registrar a cena. Compreendo. Provavelmente faria a mesmíssima coisa se chefe de alguma coisa eu fosse, mas não consigo engolir a pergunta ingênua: será tudo tão harmonioso assim, tão amigável?

George W. Bush tem demonstrado que sabe promover a violência e a atrocidade em larga escala. Evidentemente, não esperava eu que Lula atuasse agora como uma espécie de Noam Chomsky e cobrasse bom comportamento do todo-poderoso… Contudo, incomodam-me os ouvidos essas expressões: os mesmos objetivos… nenhum momento de tensão…

A imagem do livro de George Orwell intrometeu-se. Não pude evitar. O nosso companheiro Bush veio visitar um parceiro, um amigo… quase um aliado.

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Doutor em Educação pela USP e escritor; www.perisse.com.br