Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Jornais sem lucros e sem impostos

Crises devem ser enfrentadas com soluções ousadas. Ousadia, no caso da grande crise da mídia contemporânea, significa escapar dos preconceitos, dogmas e modismos.


A proposta do senador Benjamin Cardin (democrata, Maryland) de converter as empresas que editam jornais impressos de pequeno e médio porte em organizações sem fins lucrativos tem os atributos para produzir uma espetacular reversão no processo de fechamentos em série de jornais americanos.


Diferentemente do plano Sarkozy para salvamento da mídia impressa francesa (ver, neste Observatório, ‘Sarkozy quer salvar a mídia impressa‘), o projeto de Cardin não tem qualquer relação com o poder executivo, nem sujeita a imprensa a qualquer constrangimento. Formado em direito, o senador é especialista em políticas fiscais, sua solução é eminentemente tributária, seu projeto virá com a chancela do Legislativo.


Isso não significa que o plano Sarkozy seja suspeito ou contenha ameaças ao livre exercício do jornalismo. Com toda a certeza será bem sucedido no ambiente institucional francês, acostumado com a presença do Estado. Convém não esquecer que o paradigma francês de excelência em jornalismo, Le Monde, foi criado em 1944, em seguida à liberação, por iniciativa e com recursos oferecidos pelo general De Gaulle a seu amigo Beuve-Méry. O líder da resistência francesa nunca escondeu o seu desprezo pela imprensa do seu país que não vacilou em aderir ao invasor nazista.


A cultura americana, marcada principalmente pelo espírito da Primeira Emenda, herdeira da tradição liberal inglesa, não admitiria uma intervenção estatal no Quarto Poder. A ‘solução Cardin’ (o nome do senador é Kardonsky) passa ao largo do Executivo. As empresas que se filiarem ao programa transformam-se em entidades educacionais – como já acontece com as emissoras públicas de radiodifusão. Com isso, ficarão isentas de impostos sobre o faturamento em circulação e publicidade. Além disso, poderão ser habilitadas a receber doações que seriam abatidas do imposto de renda.


Em compensação esses jornais estariam proibidos de apoiar causas políticas ou fazer a tradicional declaração de apoio a um candidato. Mas estariam liberados para cobrir a política e campanhas eleitorais sem submeter-se a regulações.


Leitura, conhecimento e cultura


Embora sem qualquer conotação ideológica, o projeto Cardin traz consigo um agradável envolvimento cívico e comunitário. Diante das aberrações produzidas pelos conglomerados internacionais multimídia – em alguns casos tão aterradoras quanto as do mercado financeiro –, este projeto traz de volta a antiga noção de imprensa como serviço público.


Os conglomerados de mídia vão esnobá-lo. Aliás, já começaram (ver abaixo). O projeto não foi concebido para ampará-los. O legislador americano – qualquer legislador – não pode assistir impassível ao desaparecimento de um dos pilares do sistema político americano – a imprensa provincial.


São os pequenos e médios diários que precisam ser salvos, este é o segmento a ser estimulado e, graças à sua capilaridade, poderá reverter a pasmaceira agônica da mídia metropolitana.


O jornalismo regional dos EUA recebe das universidades a mão de obra em estado bruto, trabalha-a em empresas compactas, enxutas, e a entrega à grande mídia uma ou duas décadas depois. No meio do caminho estabeleceu uma forte conexão com a comunidade onde circula, estimulou o mercado local, reforçou o hábito de leitura, transmitiu conhecimento e criou cultura.


Uma imprensa de porte médio sem fins lucrativos, porém desvinculada do poder político e econômico, poderá ser a salvação da lavoura. Nos EUA e no Brasil.


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A divulgação do projeto do senador Ben Cardin na imprensa brasileira é, em si, um caso de estudo. Foi notícia no Globo (sábado, 4/4, pág. 36) e não mereceu qualquer comentário ou complementação dos demais jornalões nos dias seguintes, embora a informação estivesse disponível nas agências desde o dia anterior (sexta), quando o Washington Post publicou o artigo assinado pelo senador democrata.


Como sabe o leitor deste Observatório, nossa imprensa é avessa e impermeável à discussão sobre a mídia. A direção do Globo foi rápida: percebeu que o projeto não conflitava com seus interesses e o liberou. A Folha de S.Paulo e o Estado de S.Paulo, porta-vozes naturais de programas e projetos visando a desconcentração, recearam romper o pacto corporativo, silenciaram e perderam uma belíssima oportunidade de estimular a inovação.


A mídia tem soluções para a sua própria crise, basta publicá-las.


 


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