Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Jornalismo soterrado

Este é um problema soterrado pela falta de interesse em que vire notícia de jornal (online, impresso ou de TV), que mata mais do qualquer desabamento de mina (comum da China à Rússia, ao Peru), que mata mais do que deslizamentos na Serra do Rio de Janeiro ou no Morro do Bumba e Santa Tereza e inundações em Santa Catarina e Pernambuco. Mas, no que interessa ao Brasil, o jornalismo parece estar soterrado na displicência e incompetência para a investigação que o caracteriza como uma das profissões mais românticas que existe – contudo, deslizando pateticamente para o exibicionismo e info-entrenimento.

A segunda maior lagoa capixaba, separada do mar por uma estreita restinga repleta de belas falésias, está morrendo e involuntariamente matando humanos e a sua própria fauna por causa de ação anti-ecológica de empresas brasileiras com participação de capital estrangeiro.

A Samarco, mineradora brasileira controlada meio a meio pela Vale e BHP Billiton, com unidades no Espírito Santo e em Minas Gerais, recebe do quadrilátero ferrífero mineiro toneladas de pelotas de ferro conduzidas por água pela ação da gravidade, para exportação via Porto de Cubatão. Antes do minério ser embarcado em navios, a água que transportou desde Minas Gerais as toneladas de ferro de exportação é descartada na Lagoa Mãe-Bá, segunda maior lagoa de água doce do estado do Espírito Santo.

Contaminação por mercúrio

A Samarco opera na região desde a década de 1970, quando em plena ditadura militar o Brasil abriu quatro frentes de desenvolvimento ao preço do CQC, ‘custe o que custar’. Grande ênfase foi dada à produção industrial de celulose, que utiliza milhões de hectares de terra de floresta plantada de eucalipto, à agricultura da soja, igualmente utilitária de latifúndios subsidiados pelo Estado, sem contudo a proporcional contrapartida ecológica e devida fiscalização, e à mineração – esses são os três principais vetores de agressão ambiental ao lado da indústria do petróleo e gás que arrastou o Brasil até o posto de país emergente em que está.

Economicamente saudável, aos olhos atentos das principais bolsas de valores do mundo; entretanto, paupérrimo em IDH – Índice de Desenvolvimento Humano e Qualidade de Vida; abrigo de enormes bolsões de populações que vivem abaixo da linha de pobreza, ou nesta linha, sem as condições de vida minimamente dignas de um ser humano quanto a saneamento básico, alimentação, moradia, saúde e educação; com a malha de infraestrutura precária, sucateada, aeroportos ultrapassados pela demanda e padrões internacionais; com níveis de educação dos mais baixos do mundo; com um sistema de saúde insuficiente e incompetente para atender à demanda; com alta taxa de crescimento de consumo de meios digitais e pasteurizantes de hábitos e costumes.

O nome ‘Mãe-Bá’ é em homenagem à chefe da Tribo Negros-Galinhas (que habitava a região). Esta índia, de nome Bá, era considerada mãe de todos. Em Tupi-Guarani, Mãe (essé)=Olhar, então Bá era ‘a que olhava por todos’.

Mãe-bá recebe milhões de litros d´água vindos de Minas Gerais através das tubulações do transporte de minério de ferro, o qual, após ser separado na Mineradora Samarco, tem a água residual despejada diretamente na lagoa. (O vídeo deste artigo foi gravado pelo jornalista Jurandir Lazarotti, em 14 de janeiro de 2011, como esforço de denúncia da contaminação do complexo da lagoa Mãe-Bá em Meaípe/Ubu, por mercúrio.)

Olhares omissos e coniventes

Segundo Jurandir, ‘para se ter ideia, o índice de contaminação de mercúrio em 2007 era de 0,08 mg de Hg por lt (quase seis vezes maior que o tolerável pela OMS que é de 0,15 mg/lt) e em 2010 subiu para 0,4 mg/l, o que representa 40 vezes mais que o tolerável, segundo a OMS. Por ser teratogênico, atua lentamente, e se infiltra nos organismos ao longo dos anos. Estudos muito sérios estão sendo sabotados pela Cesan (companhia de saneamento do estado), que suspendeu inclusive o aproveitamento da água daquela lagoa, mas já está voltando a utilizá-la’. Leia neste site o artigo do escritor e médico Moacyr Scliar, membro da Academia Brasileira de Letras, sobre o caso Minamata, ‘Onde os gatos dançavam e as pessoas morriam’. Milhares de pessoas morreram ou adquiriram severas sequelas por doenças causadas pela contaminação de mercúrio em Minamata. O problema começou em 1932, mas somente em 1953 os efeitos catastróficos, com centenas de atingidos, eclodiram.

O jornalista Lazarotti enviou a seguinte informação, que este articulista foi apurar junto a Cepemar, empresa de Vitória que presta serviços de consultoria ambiental para a Samarco, e ao CEO da empresa BHP Billiton, sr. Marius Kloppers, embora ambos não tenham respondido até o momento da redação deste artigo (o canal de repercussão continua aberto):

‘A constatação gravada em mais de 17 horas de vídeos revela a ausência total de vida na lagoa, e pode-se perceber no local o mau cheiro e a onda característica da evaporação do mercúrio em temperatura maior. A transformação do metálico pelo orgânico, o que compromete os lençóis freáticos e atmosfera da região é outra inaceitável situação, que exige a intervenção vigorosa dos órgãos de controle. Cubatão em 78, Minamata (Japão) em 56 e Serra Pelada em 87 são exemplos recentes onde milhares de pessoas foram atingidas, incapacitadas, mortas, destruídas pela contaminação com o metal altamente tóxico, na ação criminosa de empresas inescrupulosas que despejam nos mananciais o veneno, ininterruptamente. E isso pode estar se repetindo em Guarapari, Anchieta e região, com os despejos da mineradora Samarco, sob os olhares omissos e coniventes das autoridades ditas responsáveis.’ O jornalista pode ser encontrado pelo seu web site www.guarapary.com.br que exibe outros vídeos sobre o assunto.

Sorrindo com um cadáver entre os dentes

Recebemos ainda a informação de que esta semana, no porto de Ubu, estão sendo carregados seis cargueiros de minério, todos com bandeira da ‘democrática’ China.

Em março último, a Samarco apoiou iniciativa da Associação de Piscicultores da Lagoa de Mãe-Bá, Prefeitura Municipal de Anchieta e Associação comunitária de Mãe-Bá, de realização do Festival da Tilápia e, na ocasião divulgou que, em parceria com o Instituto Tecnológico do Espírito Santo e a Universidade Federal do Espírito Santo, após a soltura de 20 mil peixes nativos da lagoa, teria totalizado nos últimos anos 50 mil solturas e a promoção de palestras para a comunidade de pescadores e moradores locais.

Estas iniciativas, a exemplo de projetos pseudo-ecológicos da Aracruz (Veracel) no Sul da Bahia, assim como da Monsanto (produtor de soja transgênica, sementes one-way, que servem apenas para uma colheita, e fertilizantes úteis apenas para aquele tipo de semente) são um manancial de investigação jornalística sub utilizado.

O ângulo deste artigo poderia ser apenas o da crítica a executivos e legisladores (do Estado e de agência reguladoras) hipócritas e a empresários que divulgam campanhas milionárias de comunicação e marketing de responsabilidade social como se estivessem sorrindo com um cadáver entre os dentes, mas serve também para convidar os colegas jornalistas a não conviverem neste banquete no mínimo desagradável, especialmente em tempos de tantas tragédias.

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Uma indústria estratégica sensível

Breve história da BHP Billiton, sócia da Vale S.A. proprietárias da Samarco. Sua história tem raízes tão fundas quanto os anos de 1860. Antes de fundir-se com o gigante BHP, a Billiton já era líder do setor de minérios e a maior produtora de alumínio, cromo, carvão, níquel, cobre e titânio, entre outros minerais. Seu quartel-general fica em Londres, emprega perto de 30.000 pessoas ao redor do mundo, com maiores operações na Austrália (onde este modesto articulista testemunhou sua extração de bauxita no território norte, antigamente pertencente aos aborígenes, e onde o barco de cruzeiro construído com as próprias mãos ficava coberto de pó vermelho, episódio que poder ser conferido no livro Alvídia – Um Horizonte a Mais), Américas do Norte e Sul e na África.

A empresa é tão sólida, poderosa e devastadora que adquiriu uma ilha rica em metal na Sumatra e trocou o nome para Belitung, associação etimológica ao próprio nome corporativo. A partir de 1990 a Billiton experimentou considerável crescimento, estendendo-se na América do Sul e chegando finalmente ao Brasil, pela bandeira verde e amarela da Vale S.A, dona da Samarco.

A celulose foi explorada nos últimos 45 anos por Erling Lorentzen, recentemente aposentado, casado com a irmã do rei da Noruega, que recebeu do governo Geisel passaporte livre internamente no Brasil para implantação de monumental complexo industrial da matéria-prima do papel, tendo escolhido as imediações de Vitória e, subsequentemente, o sul da Bahia, para a fundação da Aracruz, atualmente pertencente ao Grupo Votorantim e com grande participação de capital estrangeiro em seus principais acionistas.

A soja, em seus primórdios no Brasil (durante o governo de Getúlio Vargas) foi inserida na agricultura tradicionalmente diversificada, através da gratuidade de sementes para teste pelos ingênuos agricultores da época, e comparação com outras culturas com a do arroz, feijão e milho. A segunda fase, uma vez provado como a soja proporciona maior produção por saca/hectare plantado, inventou no país a figura do ‘rei da soja’, que vem alternando reinado a partir de Olacir da Soja. O plantio da soja migrou do sul para o centro-oeste, e atualmente para o norte, onde até hoje continua provocando desmatamentos e contribuindo para o aquecimento do planeta.

O ciclo do ouro, do século 17 ao 18, na região de Minas Gerais, deu lugar ao da mineração de minérios de ferro, em franco boom atualmente, cuja extração bruta é destinada principalmente à China, não por acaso com participação societária direta ou indireta em todas as empresas brasileiras do setor tanto da mineração quanto da siderurgia. Com esta última, em franca pista rápida de aquisição de mineradoras – uma briga surda de mercado soterrada por engenharias acionárias complexas, que a mídia pacata e em declínio não entende, o contribuinte não toma conhecimento, os governantes e lobistas tratam nos bastidores – porque se trata de indústria estratégica sensível, e lucrativa.

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Jornalista e escritor