Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Jornalistas seguem ensinamentos?

Ao ler os jornais da última semana, surgiu-me uma dúvida: o que os jornalistas fazem com o conteúdo que veem nas faculdades de Jornalismo? Fiquei com tal dúvida porque, até o que me recordo, não vi nenhum componente curricular voltado ao sensacionalismo, à apelação em favor da audiência etc. Aliás, muito pelo contrário: coberturas com essas envergaduras eram duramente criticadas pelos docentes da academia. Lembro-me perfeitamente de uma professora doutora, excelente por sinal, que associava o trabalho jornalístico, muitas vezes, à perversidade. Sim, perverso era o termo utilizado para se referir às matérias jornalísticas que demonstravam viés sensacional, apelativo, tendencioso e outros tantos que compõem a mídia tradicional.

O caso de Realengo, por exemplo. Muitos jornalões alegaram que a cobertura não partira do sensacionalismo. Alguns editores postaram até no Twitter que o sensacional passava longe da redação. Mas o que dizer das páginas de jornal que estampavam corpos ensanguentados? O que dizer das imagens chocantes da TV que mostravam crianças desesperadas, outras até agonizando? O que dizer das matérias em que as frases ditas pelo assassino tornaram-se as manchetes do dia?

Sinceramente, dá pânico. O caso, por si só, realmente, é assustador. No entanto, a cobertura feita por muitos jornalistas é capaz de triplicar o susto. É para chocar (ainda mais). Fico pensando: o que será que se passa na cabeça de uma criança ao ser bombardeada com palavras, imagens e vídeos tão cruéis? Será que, a fim de informação, a sociedade precisa desse terror todo?

Muito antes de jornalistas, somos humanos

Em texto publicado no portal Comunique-se, o jornalista Danilo Angrimani afirma que não viu exageros. Para ele, o fato já era sensacional; a mídia tinha que falar. Em contrapartida, o jornalista Laurindo Leal Filho, ainda no texto, discorda e vê um desserviço na cobertura. Ressalta, inclusive, o envolvimento das crianças: ‘As emissoras sérias do mundo têm uma regra: nunca ampliar o sofrimento das pessoas, principalmente das crianças. Aqui, até entrevistam as crianças, vítimas da tragédia.’ O desserviço, citado por Leal Filho, é um termo plenamente apropriado. Afinal, nos ensinamentos de jornalismo aprendemos que a nossa função é informar, mas nunca ir além disso. Contudo, o que notamos em casos como esse é uma verdadeira produção de um filme macabro.

Vale lembrar que o autor do crime também faz parte da sociedade. Por mais atroz que seja, outras pessoas podem estar vinculadas ao fato. Já imaginaram se o criminoso tivesse um filho menor? Qual seria o impacto das notícias na cabeça dessa criança?

Na minha época de faculdade aprendi que o jornalista deve respeitar a dor alheia, evitar mostrar o sofrimento do próximo, não propagar a desgraça, não trabalhar em prol de seus interesses, ser isento, não partidário, e prezar pela qualidade em vez de quantidade (audiência). Porém, dificilmente isso se aplica à mídia. É neste momento que questiono: o que fazem os jornalistas com o conteúdo ‘adquirido’ na graduação? Por que não seguem o que lhes foi ensinado?

A bem da verdade acho que nós, jornalistas, não somos muito bons para seguir ensinamentos. Anterior à escola de Comunicação, por exemplo, tivemos a escola da vida. Nesta, aprendemos que muito antes de jornalistas, somos humanos. Mesmo assim… seguimos sem nos preocuparmos com o pesar do outro. Humano? Pra quê? Isso, pelo visto, não vende jornal.

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Jornalista, São Paulo, SP